sábado, 31 de março de 2012

Anjos gauches



São sempre marginais os que não se encaixam num modelo, os que não se ajustam às formas prontas, os que ousam contrariar o estabelecido e sacramentado pela maioria como correto. São marginais os que nasceram sem certificados de pedigree ou rasgaram-no ainda no berço esplêndido em que foram ninados. Não ter nascido para o conveniente, não querer viver apenas para suportar, não se ajustar aos apelos dos padrões é andar fora dos trilhos, rastrear os refugos, percorrer becos e vielas em vez de ruas pavimentadas. Não se faz escolha pra ser anjo gauche... nasce-se. São os sonhadores internados como loucos, os delicados massacrados pelas hecatombes da hipocrisia social; os que ambicionam apenas o poder da essência.

Eu que conheço todos os credos e ritos, todos os modelos de ser e não-ser, eu que só tenho a virtude de ser eu mesma, digo: benditos os marginais que já rasgaram o véu das aparências; benditos os anjos gauches, os sonhadores que acham, como eu, que o mundo não pode ser só isso, as pessoas não podem ser só isso que vemos...

Aíla Sampaio

sexta-feira, 30 de março de 2012

desnecessário lembrar



Ficou muito de ti em mim depois daquele abraço: um cheiro molhado de ervas frias e o brilho do teu olho me virando pelo avesso; o desenho do teu corpo e sua pulsação, o calor da tua pele. Ficou também muita dúvida, tanta entrelinha e silêncio, que resolvi desarrumar a memória e convencê-la de que alguns momentos só fazem sentido quando apagados. O que eu trouxe, aos poucos, fui devolvendo, como um pacote que se deixa na portaria do prédio, para não ter o pretexto de olhar dentro dos olhos outra vez e enxergar o que nunca deveria ter acontecido. Nem importante nem desimportante lembrar... apenas desnecessário.



Aíla Sampaio

terça-feira, 27 de março de 2012

Apressa-te





Apressa-te.
O tempo já marca os nossos corpos
e nem erguemos ainda
as paredes da nossa casa.
Preciso de uma varanda para as manhãs de sol
e de um jardim para as tulipas vermelhas
que teus olhos plantaram nos meus
em nosso primeiro encontro.
Preciso de um alpendre retelhado
onde possamos balançar as nossas lembranças,
sem perguntas sobre o passado,
e de uma janela sem cortinas
de onde eu possa ver o mar
ouvindo a tua fala.

Apressa-te
para que nenhuma aflição suba as escadas...

É preciso paz e cheiro de lavanda
para que as nossas mãos envelheçam juntas
e os nossos livros namorem sossegados
na estante da sala.

 
Aíla Sampaio

Seu verbo diário

Nada aconteceu durante a noite para que ela acordasse sem querer ter rumo. O dia estava lá e as obrigações todas enfileiradas, inclusive os 15 minutos de cochilo da sesta. Tudo se passava lá dentro daquela cabeça incapaz de entrar em standy by nem durante o sono. 'Você precisa parar de SER um pouco', aconselhava Clarice... e ela respondia pela voz de Álvaro de Campos: "o que quero é fé, é calma. E não ter estas sensações confusas". Sensações... era isso: tudo sensações, pensamentos, confabulações sobre "a vida não pode ser só isso que eu vejo, as pessoas não podem ser só isso...". E correu pra vida, porque não tinha mais tempo pra pensar enquanto olhava o teto. Ia pensar dirigindo o carro, ouvindo música pra aguentar os engarrafamentos de veículos, pessoas, sentimentos, sensações. Ela sabia que viver não era só 'aguentar', 'suportar'. Viver, pra ela, tinha outro significado... "Bendito seja eu por tudo o que não sei; gozo tudo isso como quem sabe que há o sol" . Sim, Fernando Pessoa, a felicidade dela é essa: achar que sabe pouco e regozijar-se por isso. Seu verbo diário é APRENDER. 
Aíla Sampaio

segunda-feira, 26 de março de 2012

Só eu sei



Danço sobre as cinzas do que fomos
como se tivesse ainda brasas sob os pés.

No revés da canção,
o silêncio
é indiferença ou medo?

Não importa a razão do que cala,
se o que fala nada diz.

Só eu sei como é pesado o destino de fênix
e o desejo de transbordar num recipiente fechado.

Aíla Sampaio

quarta-feira, 21 de março de 2012

Corações áridos




Há corações que são terra calcinada, devastada pelos estios. Deixaram-se secar com a falta de rega e não mais reconhecem o olhar jardineiro do tempo. Querer tocá-los é arriscar pisar num jardim que não sabe mais florir. Às vezes vale a pena ensiná-los a desaprender o abandono e permitir que reverdeçam seus galhos secos; que renasçam as tulipas e as orquídeas soterradas sob a aridez da descrença. Às vezes é inútil tentar... insistir pode cavar os nossos próprios desertos ou fazer-nos habitar geleiras sem que estejamos aptos à solidão ou à indiferença cruel das almas áridas e desabitadas de sol.



Aíla Sampaio

quinta-feira, 15 de março de 2012

Inteireza



Alguma coisa mudou irremediavelmente dentro de mim. Como uma noite chuvosa que se esvai em sol pela manhã. Como um rio que correu demais e virou lagoa. Esperei por isso, mas só quando esqueci de esperar aconteceu: a sutileza da percepção, o reencontro com o há muito perdido; o tempo exíguo que se elastece sem esforço; a desnecessidade repentina do que já foi necessário; o não-sentir falta do que fazia falta e machucava. Veio sorrateiramente esse vazio que não é ausência, mas presença de satisfação sem o excesso de bagagens. Uma sensação de inteireza e desvontades fúteis, um estar no mundo sem barrulhos íntimos. É isso: o suficiente está sendo o bastante. Nada falta e nada excede. Sensação de plenitude... como a da aurora preparando o dia...


Aíla Sampaio

quarta-feira, 14 de março de 2012

Reviravolta


Enquanto tu me esquecias,
eu desenhava a lua com nanquim
pra escurecer a noite
e não enxergar as marcas
que as minhas lágrimas deixavam
na paisagem.

O dia correu em meu socorro,
e atravessou minha tristeza
enquanto meu amor-próprio amanhecia...
Tudo tão rápido, tão certo,
que os únicos resquícios que ficaram de ti
em mim foram a maquiagem borrada
e a noite mal dormida.

Aíla Sampaio

sábado, 10 de março de 2012

Não adianta impor interditos aos meus sonhos, com portas lacradas e fechaduras sem chave... as minhas vontades atravessam paredes!



Aíla Sampaio

Arquivo morto



Saudades se avolumam

nas prateleiras do tempo...

Deixo que a poeira soterre os rostos,

mas, de vez em quando,

o vento passa

e descobre os silêncios

que gritam nas pastas da memória,

fazendo inútil

a minha tentativa de colocá-las

no arquivo morto.

 
Aíla Sampaio

terça-feira, 6 de março de 2012

O silêncio



O silêncio do que não houve
não me comove;
apenas move interrogações
que ficarão sem resposta,
pois o tempo não ouve o passado
só escuta o presente.

Aíla Sampaio