segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Sob a névoa



Olho-te, sob a névoa do tempo, tentando reconstruir o sorriso que tanto amei. A distância não embotou minha memória, tampouco a interditou como deveria. Lembrar-te não é trazer-te de volta. É aceitar que já não te tenho e devo contentar-me com os fragmentos de cenas que guardei. É estranho perder de vista quem nunca saía do meu radar; acostumar-me à falta de notícias, não saber aonde andas enquanto te procuro com os meus pensamentos. É estranho não mais ser o motivo das tuas saudades e não ter mais pelo que esperar; ver os dias passando cinzentos, como se o sol não tivesse mais motivos para nascer. Do outro lado da janela, tudo permanece igual. Aqui dentro, há um mundo devastado pela certeza de que abriste mão dos nossos sonhos. Tudo o que vivemos de bom se esvaiu pelas águas turvas dos teus medos. Do mar que eu via em teus olhos restou apenas o naufrágio.


Aíla Sampaio





Talvez



Ela sempre se apressa a mudar o rumo que os pensamentos tomam quando atravessa a rua e sente a tarde cair sobre os flamboyants floridos. Há qualquer punhal escondido sob o tapete de pétalas vermelhas que a faz sangrar; há lembranças ainda úmidas da última primavera em que se sentiu dona de um jardim. Talvez devesse jogar as recordações na primeira chuva, para que o passado escorresse pelas quatro águas de sua memória. Talvez devesse nunca esquecer que alguns amores já nascem com a data da extrema-unção; deixá-los vingar é permitir um crime contra a própria felicidade.

Aíla Sampaio







Rio sem afluente



Lembro-me dela menina, da displicência que sempre sujava a toalha da mesa, dos gritos da mãe a lhe despertarem as culpas que carrega até hoje. Na pele salpicada de estrelas, havia um céu perdido antes do tempo e um medo da vida disfarçado em impetuosidade. Cresceu à margem de si mesma, contentando-se, suportando, fechando os olhos pro que não dava pra ser. Foi-se esquecendo dos jardins floridos dos seus sonhos, dos quintais bem varridos de sua infância, dos amores que não vingaram. Fez-se solidão e poesia com as sobras do que poderia ter sido. Sobreviveu aos próprios enigmas, mas não à nostalgia de sua alma. Do lado de fora, um sorriso de contentamento, uma fortaleza à beira do mar. Por dentro a gravidade de tudo, a fragilidade dos cristais, os rios sem afluentes.

Aíla Sampaio