domingo, 5 de julho de 2020

Não existe um novo normal





Não existe um “novo normal”. Existe um mundo desmoronado que precisamos remontar. “Novo normal” é para quem não entendeu que a anormalidade já vinha de muito antes de essa pandemia suspender todas as urgências.  O “toque de recolher” já estava sinalizado pelas agressões à natureza, pelo ritmo insustentável de vida que quase todos levávamos, correndo atrás da sobrevivência material, pelo consumo desenfreado, pelos egos inflados, pelo egoísmo nosso de cada dia. Não quisemos ver nem ouvir os apelos.
Não existe um “novo normal” depois da perda de tantas vidas, do descaso de muitos com o ser humano transformado em números e estatísticas. Por mais que eu entenda a vida como um ciclo que tem começo meio e fim,  não deixo de refletir que muito sofrimento poderia ter sido evitado se fôssemos pessoas melhores.
A pandemia e o isolamento social desnudou o esqueleto de países subdesenvolvidos como o nosso. As desigualdades sociais tomaram vulto e fomos obrigados a ver o tamanho da ferida. O Leandro Karnal disse sabiamente que enquanto as classes A e B morrem de tédio, confinadas em suas casas, os pobres morrem de fome. A sensação de impotência me visita todos os dias e me vejo sentada sobre os escombros, pensando sobre o que posso fazer.
Paralelos aos problemas sociais e econômicos - fome, falência de pequenas empresas, desemprego, mortes -  estão os problemas pessoais consequentes do confinamento obrigatório. Nunca as pessoas, talvez, tenham convivido por tanto tempo com os familiares dentro de casa; nunca, talvez, tenham ficado tanto tempo tendo que encarar a si mesmas. O exercício da cessão do espaço ao outro, como o exercício do suportar-se, resultou em muitos conflitos: desentendimentos, separações, depressão, ansiedade, entre vários transtornos similares.
Poucos entenderam a oportunidade dada de serem melhores, de buscarem autoconhecer-se para, a partir daí, compreenderem melhor os outros.   Tivemos que nos reinventar profissionalmente, mas pensamos em nos reinventar como pessoas? O que ressignificamos  para melhorar o olhar sobre o mundo, as pessoas e nós mesmos? Quantos alimentaram as insatisfações e mergulharam no poço fundo da depressão, alimentando a água barrenta que deixaram a vida acumular, sendo pássaro, mas querendo viver debaixo d’água como se fosse peixe?
Essa comparação usada pela psicanalista Fátima Landim dá toda a dimensão da insatisfação humana: há peixes querendo voar como pássaros e há pássaros querendo nadar como peixes. A irracionalidade da não obediência à natureza é a raiz de toda angústia e, consequentemente, das doenças que gestamos lentamente dentro de nós.
Sinto esse momento de reclusão como uma oportunidade de estendermos o olhar para dentro de nós, para a descoberta do ser divino que habita nosso corpo físico e, senhores de nós mesmos e da nossa missão, lançarmos o nosso olhar para fora. É olhando o mundo e sentindo-nos parte dele que nos tornamos capazes de nos colocar no lugar do outro e sentir a sua dor. Nossa visão deve ser sistêmica, ou seja, consciente de que todas as coisas estão relacionadas e influenciam umas às outras. Estamos ligados pela nossa humanidade, unidos pela tarefa de aprendizado e doação. Só precisamos descobrir que todos somos um para melhorar o mundo e, claro, a nós mesmos.


Aíla Sampaio