segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Outra vez menino e menina






Pintei os lábios e as unhas de vermelho-sangue
e prendi os cabelos como se eles ainda fossem longos.
Disfarcei as olheiras, cobri meus medos
com bastante pó de arroz e fui encontrá-lo
já noite, temerosa do assédio de tantas luzes.
Nenhum de nós era mocinho, mas eu era a mulher
e me embriagava fácil sobre os saltos altos
que desequilibravam minha segurança.
Na terceira taça de vermouth,
pedi que ele não me olhasse de perto
depois da meia-noite,
(quando tudo estivesse já se deteriorando:
o lápis borrado nos olhos, o batom desbotado, o rosto sem cor).
Não queria que me visse entre as flores
que começavam a murchar
no vaso da mesa ao lado.
Mas ele me olhou destemido do que o tempo
já nos consumira e, naquele momento,
voltou o frescor das maçãs da minha infância.
Toda a paisagem reverdeceu
e fomos, outra vez, menino e menina
provando a ambrosia dos deuses.

Aíla Sampaio 


 

domingo, 24 de novembro de 2013

No meio do salão


A música parou antes do fim da festa. Ela ficou estática no meio do salão vazio, perdida no compasso do silêncio, sem ponto de partida nem de chegada, sem armas no meio da guerra. Restava-lhe escutar os passos da solidão que avinagrava as lembranças boas com a acidez da separação. Sabia que não poderia ser de outro jeito e mergulhava num abismo irreversível de descrença naquilo que um dia acreditou. Não havia remédio; nada mais remendaria aquela taça quebrada, então precisava não ser, não sentir, até  que a vida a tirasse pra dançar outra vez.

Aíla Sampaio

Por conta das estrelas






Vem devagar. É de porcelana o meu chão. A vida tem me feito andar na ponta dos pés, sempre ressabiada com o peso dos dias. Não grite, não force a porta. Atravessa as minhas paredes e senta-te ao meu lado em silêncio. Preciso que a tua presença me vista com toda sutileza que o teu amor for capaz. Depois, podes tirar as pantufas de lã e andares seguro pelas ruas pedregosas da minha rotina. Já será noite e todas as delicadezas ficarão por conta das estrelas.

Aíla Sampaio



quarta-feira, 20 de novembro de 2013


Sobrevivência emocional



Refletindo, sem nenhuma pretensão de impor as minhas 'verdades' ou convencer alguém de alguma coisa, chego cada vez mais à conclusão de que algumas pessoas só arrancam dos outros o seu pior certamente porque vivem pelo seu lado mais hediondo. 

Sempre estive convencida que que ninguém é inteiramente bom; alguns fazem aflorar o seu melhor, harmonizando e contemporizando as diferenças; outros, entretanto, sufocam a sua bondade possível e vivem para o mal, embora, na maioria das vezes, nem tenham consciência disso. São tão enfermos de alma que nem se apercebem da aberração que são para o próximo. Quando convivemos com essas pessoas nebulosas, sentimos que um só olhar delas é capaz de sugar as nossas forças.

Imagino que toda relação é mediada por energias que podem construir ou destruir, de acordo com o modo como são canalizadas. Daí existirem antipatias gratuitas, rejeição imediata a determinadas presenças. Como existem simpatias instantâneas e familiaridades inexplicáveis. Esse mistério é o que me faz pressupor os campos espirituais iluminados e os trevosos. 

Podemos tentar reverter a escuridão em luz se estivermos fortalecidos para arriscar-nos em território minado. Se não, resta-nos manter distância, respeitar as diferenças e evitar confrontos que gerem mais desarmonia. O afastamento, pois, de determinadas pessoas, pode ser uma questão de sobrevivência emocional.


Aíla Sampaio




A história deles



A história deles começou com um poema. E foram-se fazendo de palavras, imaginando rosto pra elas e escrevendo a vida com as cores de cada dia. Caíram em muitas metáforas, correntezas os levaram e trouxeram de uma margem a outra do rio de lágrimas que era cada separação. Sobreviveram algum tempo agasalhados com a esperança de uma ponte sobre os mares revoltos, mas, entre uma e outra espera, fizeram-se as demoras e as desilusões. Naufragaram em terra firme; hoje são apenas um texto que não terminou de ser escrito.

Aíla Sampaio





quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Certos amores




Na insensatez dos botões,
os nós desatados,
os atos impensados, 
lobos a uivar na noite
dentro de dois corpos
navegando em alto mar. 

Qual dos dois deixará o barco 
antes do amanhecer?
Logo se saberá.
Em alguma teia do destino
traçou-se o desencontro
amarrado na certeza
de que certos amores 
só vingam em lençóis de areia, 
jamais nos de seda.

Aíla Sampaio

Como um livro




Tudo já foi dito.

Nenhuma palavra escapará do clichê; 
nenhum verso dirá o que já não sabes. 
Ainda assim, 
continuo a escrever-te, 
reinventando as antigas juras 

e reeditanto o meu amor 
como um livro que será novo 
a cada vez que for lido.

Naufrágio




A um oceano de ti,

meu pensamento é um barco
de velas içadas.
Nada contra a maré,
corre contra o tempo,
esconde-se no meio das vagas.
Entre encontros e despedidas,
navega,
naufraga.


Aíla Sampaio



Longe de ti




Sob o tecido da tarde,
o tempo costura as horas
para fazer a eternidade.
Sobre o desejo que arde
feito fogo
o teu corpo amanhece o meu

e dá as cartas do jogo.

Longe de ti, porém,
sou de mim só uma parte
e morro todo dia um pouco.


Aíla Sampaio

domingo, 10 de novembro de 2013

Portas fechadas






Como um pássaro que finda seu voo numa parede iluminada,
eu me estilhaço no silêncio intempestivo da tua ausência.
Minha boca seca, minha mão crispada, meu olhar vazio
tudo te dizem, mas não dizem nada.
O tempo me leva vida adentro sem rotas e sem mapas
à mercê dos ventos e da escuridão que há
por detrás das portas fechadas.
Não há dia nem sol que atravesse as minhas janelas abertas;
no coração que dói, qualquer hora é tortuosa madrugada.

Aìla Sampaio