quinta-feira, 26 de agosto de 2021

CHORO BANDIDO

 


A resposta nem sempre vem quando fazemos a pergunta. Às vezes até já nos esquecemos dela, quando a encontramos parada numa esquina qualquer da vida à nossa espera. Aí a gente entende que certas coisas não acontecerem é o melhor que poderia nos acontecer; que choramos e sofremos por nada!

 

A vida é paga no débito. Não adianta correr pra escapar. A conta virá de qualquer jeito. Penso nisso olhando os carros passando na rua. Estou anônima na janela do meu quarto, imaginando a história de cada pessoa que está dentro deles. O que temos em comum? O medo da vida? A coragem de assumir que somos uma fotografia desfocada de nós mesmos? Quantos não sabem disso...

 

Toca “Choro bandido” e coloco mais vinho na taça. Quero me afogar na voz do Chico, pois, como os cegos, posso ver na escuridão.  Há um abismo em que caem todos os meus sonhos. Conto-os, um a um...  A resposta que a intuição quis antecipar me espera na esquina. Decido não ir até lá e deixo a conta para o próximo mês.  Encho mais uma taça de vinho e faço uma selfie em boa resolução... Desfocada é a vida, não eu.

Aíla Sampaio

Mulher é desdobrável

 


Não gosto muito de falar sobre questões de gênero. Gosto de falar sobre pessoas, seres humanos, já que todos têm em comum a dor de existir. Mas, sendo mulher numa sociedade patriarcal e machista, não posso deixar de tocar na vulnerabilidade da minha condição, que é a da maioria. Diz uma prima que o homem vive centrado no umbigo. São raros os que levantam os olhos para enxergar a parceira em seus momentos graves, embora elas estejam atentas a todos os que eles vivem. Não aceito isso como prerrogativa do masculino, entendo como egoísmo pessoal, que pode ser apontado e refletido em ambos os sexos. Mas é fato que o homem recua antes da exaustão. A luzinha vermelha deles acende antes da nossa e ele opta por si mesmo a despeito do que está ao redor. E sobra pra quem?

Sobra para a mulher, que se desgasta e se estressa, mas assume suas demandas ainda sem poder.  Suas jornadas são múltiplas e intensas, sem direito a trégua. E ainda dizem que elas são as culpadas, pois fizeram essa escolha, que permitiram. Talvez até tenham permitido, sim, certos abusos, mas não optaram por trabalhar muito e estarem presentes na vida dos seus filhos, sobretudo quando crianças, ensinando tarefas, levando para a escola e outras atividades, conversando, cuidando, educando. Fazem isso porque precisam e, na maioria das vezes, não têm com quem dividir,  mesmo o parceiro estando em casa (e querendo a disposição dela todas as noites). Djavan fala muito dessa fase, quando canta: “sabe lá o que é não ter e ter que ter pra dar...”. 

Mas isso não faz da mulher uma heroína. Nem uma mãe especial. Ela é sobrecarregada. E continua sendo quando os filhos crescem e tantos outros problemas da vida em comum e das demandas de trabalho aparecem. Continua acumulando funções, embora em outra fase. Faz mil coisas ao mesmo tempo e, no dia em que deixa de fazer uma ou reclama, é julgada. É considerada estressada, tóxica.  Há quem não entenda que ninguém bate o carro porque quer; ninguém toma atitudes drásticas em momentos extenuantes porque quer, ninguém chora de desespero porque está bem. Tudo isso é reflexo da sobrecarga, da corda esticada que se rompe. Mas às mulheres não é dado esse direito. Se gritarem, são ditas histéricas; até dizem que são mal amadas. E de certa forma são.

 

Por isso hoje eu já chego batendo o pé na porta pra conseguir entrar em meu mundo sem culpa. Chega uma hora na vida em que a opinião dos outros tem pouco peso. Ela choca, magoa, mas bate e volta. A tecla do “dane-se” se instala aos poucos na pele grossa de tanto apanhar da vida. Aí a gente quer perto apenas quem soma. Não importa o que pensem, afinal, o que o outro pensa não muda o que somos, a verdade do nosso coração. Como dizia o Rubem Alves, "não quero ter razão, só quero ser feliz". No meu caso, transmuto tudo com a Chama Violeta e evito engatar a ré... Sigo em frente pregando paz e amor, mas fazendo guerra quando é necessário. Afinal, nasci mulher! E mulher é desdobrável, né, Adélia? Eu sou!


Aíla Sampaio