segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Retrato antigo

Não tenho mais o teu rosto fixo na memória
como um retrato na moldura.
Acho que despencou parede abaixo,
estraçalhou-se no assoalho manchado
dos desejos não-satisfeitos.
Restou o papel encardido de esperas
com a irreconhecível fisionomia
de um homem antigo
cujos olhos não mais se reconhecem.

São assim as terras por que pisamos inseguros
e das quais voltamos de mãos vazias:
terra apenas, sem flores nem água;
é assim o rosto que já foi amado
quando entra no território do esquecimento:
uma fisionomia borrada apenas, mais nada.



Como na Carta de Paulo

Ela conseguiu sobreviver àquele amor que até ontem mudava a cor do seu rosto quando alguém pronunciava o nome. Já havia lido os Coríntios e se identificado: tudo sofreu, em tudo acreditou, tudo suportou, tudo esperou até que, de tanto sofrer, acreditar, suportar e esperar, descobriu que não bastava falar a língua dos homens e dos anjos, era preciso que o homem amado não pensasse como um menino, que acabasse com as coisas de menino quando já não era um menino. Assim, machucou, machucou-se... então, sem vaidade, sem vangloriar-se, sem ensoberbar-se, sem portar-se inconvenientemente, sem buscar os seus próprios interesses, sem irritar-se ou não suspeitar mal, desistiu do amado, mas o amor... o amor ficou, como profetizou a Carta, porque o amor jamais acaba; aniquila profecias, cessa as línguas, faz desaparecer a ciência, mas não acaba. Assim foi, assim será. (Aíla Sampaio)

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Maré cheia



Quando sinto teu cheiro de mar
reberverando no vento,
sei que me chamas a mergulhos
em plena maré cheia.
Fecho a janela e guardo-me
no mais tumultuado silêncio,
prevendo sargaços nos desvãos da alma
e tempestades corpo adentro.

Sei de cor os adágios do teu canto,
os aromas das algas
que não se volatizam no tempo,
e os tantos segredos guardados,
nos lençóis de areia.

Escuto teu chamado e ensurdeço
sob o corolário de gritos
que tecem teias de abraços e medos.
Só assim me livro do contágio
dos teus beijos
e não ouço, mais uma vez,
o canto das sereias;
só assim não morro, outra vez,
vítima de outros naufrágios,
refém de irrealizáveis desejos.


 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Agora

Chega de pretéritos imperfeitos ou de futuros do subjuntivo.
Agora só conjugo o verbo amar no presente do indicativo!

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

FADO


Fugi de todos os destinos
mas eles ainda atravessam o meu caminho
como fantasmas que se revezam para assombrar-me.
De nada adianta dormir;
a lida contra o vento se estampa em meu rosto
como palavras num pergaminho
e é irreversível a marca das tempestades.

Ninguém devora a carne do tempo impunemente.


Das braçadas contra a correnteza,
restou o cansaço, ficou a incerteza do porto
ancorada em presenças ausentes,
cidades perdidas no mapa da memória.
Fiz de nuvens o meu castelo alado.
e sobre escombros escrevi minha história.
De nada adiantou seguir os desvios
e quebrar as correntes:
Ninguém consegue fugir ao fado.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Tela


O tempo costura a vida com pontos de cruz,

fazendo desenhos multicores no tecido dos dias.

Na tela em que meu destino foi bordado,

não há manchas de dedos nem frouxos alinhavos

desfazendo a harmonia.

Nasci, certamente, das bordadeiras de sonhos

que tecem lenços azuis todas as manhãs

para que a realidade, com seu duro fardo,

não pesponte escuridão onde o traço é de luz.


Aíla Sampaio

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Mudando o enredo


Não quero metades ou frações.
Nasci para inteiros,
para desmedidas;
não para a vida inteira, mas para o instante
que pode esvair-se em segundos
ou durar para sempre.

Foi assim desde o início:
a escolha pelo possível, a decisão pelo viável,
a inglória sensação de uma alma resignada
que, por detrás das cortinas,
continuava a desejar o impossível .

Aprendi a sair do eixo
e a brigar com a impossibilidade do prefixo
por isso: 
para mudar o enredo da minha história
e seu desfecho.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Dono do tempo


Quando chegares, deita tua cabeça em meu regaço
e colhe a dia, como se fosses o dono do tempo.
É tudo teu: o quintal ensombrado,
a rede estendida na varanda e todas as minhas horas.
São teus também os meus olhos de criança,
que passeiam pela casa e pelo teu corpo,
como se andassem pelas ruas de Veneza.

Entra e come do meu pão e bebe do meu vinho,
sem desfazer as malas.
Rega a flor que plantaste e me diz umas poucas palavras.
O muro coberto de hera, a lua na calçada
e as libélulas 
escutarão teus passos
antes da madrugada.


Eu, não.
A espera me ensinou o silêncio,
mas não abalou a certeza da tua volta
(a qualquer hora).
Tu podes ir.
Só te peço que não digas nada.
Não olhes para trás nem batas a porta ao sair.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

EU E "OS COMIGOS DE MIM"

Eu não gosto de silêncios demorados nem de promessas. Nasci assim, com seriedade para as coisas que mexem com sentimento. O silêncio deve durar o tempo necessário para conter as impetuosidades; depois tem que haver diálogo. Toda situação indefinida me desequilibra. A minha leveza está nesse fio tênue que me separa dos que são precipitados demais, dos que adiam demais, ou dos inconsequentes, dos que, para 'sair sempre bem na fita', fazem propaganda enganosa de si mesmo. A vida não deve ser levada muito a sério, dizem... concordo em parte.


Não sei viver em corda bamba, sou da terra, gosto de sentir os pés firmes. Comodista, talvez... a idade pede suas benesses, fazer o quê? Voo, sim, e até esqueço de aterrisar, mas não o faria se não houvesse a possibilidade de voltar ao chão. Posso correr o risco de me espatifar, sem problema, mas quero a possibilidade do chão sob os meus pezinhos 36. Ultrapassei a fase (se a tive) de me jogar no escuro. Aventura tem hora...brincadeira também... e não devem mexer com os 'ais' dos outros. Brincar com responsabilidade, porque riso é coisa séria. Pode descontrair ou constranger, e nunca sabemos como o outro está para receber o que mandamos.

 Não me pesa ser assim, ao contrário: torna-me pesada a espera pelo que não vem, a sensação de que perco tempo ou machuco alguém, a falta de bom senso de quem só espera ser compreendido e acha sempre que está certo. Não sei lidar com inconsequência, com desorganização (nem das coisas nem do pensamento). Se perco o eixo, paro tudo... evito rodopiar em cima de quem não tem nada a ver com os meus giros... cada um já tem que cuidar dos seus. Acho que já nasci 'velha', cansada de excessos. Quando menina, meus desafios não eram subir em árvores ou escalar muros, era procurar a lua e contar estrelas no céu, sem medo de criar verruga. Era contemplativa e sabia a hora de agir, deixar a inércia. Vivia vazios repletos... repletos de pensamentos e reflexões sobre a dor e a delícia de existir. Eu sabia que era diferente das minhas primas e tive certeza quando, um dia, o meu avô me disse isso ao me ver isolada das outras.


Não sei ser peso pra ninguém. A armadura de vítima também não me cabe. Para manter o meu bom humor, preciso evitar quem mexe na minha ordem, quem ultrapassa os meus limites. Aceito as pessoas como são, jamais ousaria mudar a natureza de quem quer que seja, mas não me permito também mudar a minha a qualquer hora ou por qualquer motivo. Negociações e acordos funcionam no sistema de trocas sem violência à essência... é saudável ceder, acatar sugestões, quando a vontade e a disposição são mútuas. Em caso contrário, não rola. Não me submeto mais ao que me faz infeliz... Sou ainda aquela menina que contava estrelas... só que a vida me ensinou a ter medo das verrugas!


A.Sampaio. 09/02/2011

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Amor

  Insensato,
mas, ato contínuo,
o amor se fez ideia
desiderato.
Era amor,
tinha destino,
tinha sentido.

Ventos e tempestades
o vergaram;
ergueu-se
continuou
a despeito do sol,
das chuvas.
Exposto ao calor ou ao frio
resistiu;
era amor e
tinha destino
tinha sentido.

Perdeu-se
numa curva,
rua sem saída
mar sem bússola.
De repente,
caiu numa emboscada
quis resistir
mas não encontrou sentido
não havia mais caminho.

Exaurido, surdo, cego,
só e taciturno
morreu à míngua
ninguém soube
ninguém viu
ninguém leu o nome
tatuado em sua língua
como um grito mudo.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O que ficou

O que ficou de ti
não foi o calor dos abraços
nem as lembranças
guardadas entre livros e fotografias
não foi o laço feito
de afinidades e cansaços
nem as canções
com que me ninavas quando eu dormia.


As marcas das tuas mãos
desapareceram do meu corpo
e o gosto do teu beijo
em minha boca se desfez.
Não ficou a intimidade
pouco a pouco construída
sequer um sentimento
para trazer de volta minha insensatez.


O que ficou de ti
foi a tua indiferença
à minha mão estendida;
foram as palavras de descaso
ditas à revelia;
a delicadeza esquecida,
e a ternura desperdiçada
em inesperada ironia.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Para te esquecer

Para te esquecer
é preciso fugir ao destino
desdizer o já dito
apagar o que estava escrito;
é preciso aprender o silêncio
da cumeeira das casas
saber viver sem abrigo
e aprender a voar sem asas.

Para te esquecer era preciso
nascer Zeus e enganar o Tempo
ou até mesmo nem ter nascido.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

‎Fevereiro chegou devagarinho, com seus dias poucos, com seu jeito de segundo, aquele que pode realizar o que o primeiro não fez...