Poemas, contos, imagens... palavras e silêncios. Mergulhos e naufrágios de AílaSampaio
sexta-feira, 16 de janeiro de 2015
Sem trégua
Minha vida sempre foi andar de salto alto sobre um varal de incertezas. Nasci em carne viva e com a natureza moldada pro eterno, mas o mundo só me deu o provisório. Nasci pra andar descalça sobre brasas e não emitir um 'ai' sequer; pra ser de paz e dizimar as guerras, mas cedo me vi de armas nas mãos e jogada na luta com uma ordem imposta: ou mata ou morre! Não escolhi... foi minha sina essa morte diária pendurada nos olhos, esse desassossego de ventos a vestir-me na pele da noite, sem dar trégua às minhas tempestades.
Aíla Sampaio
quinta-feira, 15 de janeiro de 2015
Via crucis
Fiz-me das sobras da tua sorte como se eu fosse a sombra das tuas árvores. Fechei tantas vezes os olhos pra não enxergar a chaga, mas a vida fez questão de estampá-la nas pedras dispostas no caminho, na nossa incompetência para desviá-las e criarmos nós mesmos a nossa estrada. Desisti das roupas de Amélia e vesti as de Madalena para fazer a via crucis daquele amor, na esperança de que, após a morte, houvesse a ressurreição. Restaram-me silêncios, espasmos de interrogações sem resposta e o resto da vida pra costurar as incertezas.
Aíla Sampaio
Não engulo mais lágrimas nem desaforos. Não escondo mais amor nem sofrimento. Se viver é um verbo escandaloso, porque conjugar suas delícias e dores em silêncio?
Aíla Sampaio
terça-feira, 13 de janeiro de 2015
Nunca lamente o trem perdido, o amor que se foi, a
oportunidade que passou. Todas as coisas têm o seu tempo exato para acontecer e
o seu prazo de permanência. O que verdadeiramente nos pertence nunca sai
definitivamente da nossa vida. Pode até ir, mas sempre dará um jeito de
voltar... Se não voltar, será o melhor que nos poderia ter acontecido.
Aíla Sampaio
(Mulher Lendo, Van Gogh).
As
folhas de papel se espalham sobre a mesa. As tintas descoram as
palavras, mas o sentimento não desbota com o tempo. Sentada com os
braços apoiados numa almofada, ela lê vagarosamente cada uma, fechando
de vez em quando os olhos, como quem está sendo beijada. Depois repassa
fotografias, suspendendo pausadamente a respiração como se quisesse
reviver os momentos congelados no tempo. Há anos não acende a lareira
nem corta os cabelos. Há anos escreve cartas que não envia. Vive
escondida de si mesma, sepultada nas lembranças que inventou pra não
enlouquecer.
Aíla Sampaio
Aíla Sampaio
(Mulher Lendo, Van Gogh).
segunda-feira, 12 de janeiro de 2015
A poesia
A poesia é uma forma de inventar e desinventar amores. É bom vê-los começar e terminar sem lágrimas, despencando apenas das palavras que lhes deram a luz. A linguagem poética cria, recria e descria realidades sem tocar uma nesga de sua concreta (?) estrutura. Assim, encontros se fazem, despedidas latejam, dores adormecem e acordam no mesmo compasso. Gosto de fazer rastejar o que me põe a alma cansada. Gosto de fazer com as palavras o que não posso fazer com os olhos e as mãos. Mas nada, absolutamente nada, tem certidão de nascimento, nome ou endereço. Tudo nasce e desnasce sem compromisso com o que, quem ou quando. A poesia é minha deserção desse mundo que, por mais íntimo que tente se fazer, me é inevitavelmente estranho.
Aíla Sampaio
Não se tira facilmente um grande amor do coração como quem arranca à faca a polpa de uma fruta. Não se arranca da memória, como quem tira água de um pote, a lembrança de quem escreveu seu nome em nossa alma. Às vezes se finge... é preciso fazer de conta pra ver se acontece, pra ver se o coração acredita e nos obedece!
Aíla Sampaio
Essa saudade que às vezes me visita não é de nada já vivido. É de algo novo, mas tão antigo que nem tem rosto. É um desejo de me espalhar em mim, de me encontrar em mim, sem o sal do suor que derramei inutilmente, sem o doce que virou amargor em minha língua cansada de enganosos sabores. Essa saudade que sinto de mim vem do tempo perdido nos desvios e nos abismos de medos e angústias que me deram as falsas alegrias; é vontade de recuperar meu rosto e minha alma deixados no meio da travessia. Saudade é vontade de viver de novo o que já foi, o que poderia ter sido, o que não será...
Aíla Sampaio
Recomeçar
Quero as portas abertas, o vento atravessando a casa, e o sol brilhando nas cerâmicas da varanda. Quero a rede armada e o lençol macio, o banho frio no calor e a cama arrumada para a sesta; quero o livro marcado e o copo d'água ao lado; um lápis com ponta e um papel em branco. Quero a TV pra não ligar e a janela entreaberta para os barulhos da rua. É assim que a vida se espalha pelo chão, de pés descalços e roupa lavada.... É assim que quero recomeçar a ser só e bastar-me.
Aíla Sampaio
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