segunda-feira, 26 de agosto de 2024

O Livro das ausências, de Hermínia Lima


  

O Livro das ausências, de Hermínia Lima, traz dezenas de poemas acerca de faltas que  habitam, ausências presentificadas pela saudade. Embora unificados na mesma temática, eles estão dispostos em blocos que se intitulam como: Ausências que cantam, Ausências que gritam, Ausências que pulsam, Ausências que saltam, Ausências que sangram, o que parece dimensioná-las, ou melhor, catalogá-las pela semântica dos verbos.

Neste “inventário de saudades”, como bem definiu o poeta Geraldo Jesuíno, prefaciador e responsável pelo belo projeto gráfico da obra, cada conjunto é composto por imagens que o eu lírico evoca. Nas ausências que cantam, ecoam os sons da infância e da juventude, que saltam das fotos e trazem à memória espaços e personagens que se perderam no tempo: a casa, o curral, a rede, o patriarca que dorme, o gato arisco, a cozinha e os sabores, as tias, os avós, os livros da mãe, a mestra, o universo gustativo e olfativo das frutas – manga, goiaba, cana, melancia – e as vivências da menina que imigra do Ceará para o Maranhão, guardando na memória sensações e lembranças indeléveis.

Nas ausências que gritam, o telurismo da menina dá lugar à urbanidade da mulher que se apaixona e experimenta a perda e a espera, a saudade feito faca e lâmina, figuras recorrentes na poética da autora, que sugerem tanto a profundidade da dor pela iminência do corte, como se afiguram como um símbolo fálico, de agressão e masculinidade, evocando as pulsões que estão metaforizadas nos poemas. Em outras obras suas, o erotismo é flagrante, mas, nesta, aparece velado por metáforas como a do jardineiro (p.74), que poda e rega as rosas, ungindo a terra e pondo sol sobre as flores. NAs Ausências que pulsam, o corpo se transveste de guitarra, e o prazer é a música que os dedos do amado arrancam de suas cordas. Os poemas, de fato, parecem impulsionados pela saudade cortante do afago corpóreo, pelo entrelaçamento que gesta música, pelo rito do amor, pelas pétalas que querem se abrir. Anuncia-se “um tempo de casulo” (p.127), de recolhimento, de espera, em que só as ausências sussurram e cantam. “Só a penumbra guia passos incertos” (p.138).

Em  Ausências que saltam e Ausências que sangram, os olhos viram cascatas, espinhos espetam a pele, o corte se aprofunda, “o vinho fala mais tinto” (p.146), as estrelas parecem mudas e o verde perde o viço. A saudade se estende à perda de amigos e expectativas, mas há semente e adubo para os versos, bem como rimas e metáforas que o eu lírico promete usar para sobreviver aos hiatos criados pela vida.

Embora sejam as ausências o leitmotiv de todos os poemas, e a lâmina da saudade aprofunde os cortes, não há qualquer marca de desespero ou desengano nos versos de Hermínia. O sujeito poético celebra, louva, lamenta, recorda, e ancora nas palavras a dor de cada uma; vê o amarelo das gérberas tingir a tarde e se prepara para saudar a lua, enquanto planta amoras e, mesmo na incerteza, espera o tempo da colheita.

Aíla Sampaio

O novo romance de Celma Prata


     Bodum é o segundo romance de Celma Prata, cuja narrativa autodiegética traz o relato de Giacinta (Gia), uma professora universitária nordestina, acerca de sua amizade com Amébia (Bia), também nordestina, ambas descendentes de povos originários. Conheceram-se por acaso – “Ao primeiro olhar, nossa principal semelhança era física: pequenas, cheinhas, pardacentas, cabelos pretos lisos, duas coboclinhas bonitinhas meio fora do lugar”. Ambas são órfãs, vivem anônimas e sozinhas na cidade grande até se perderem uma da outra. Mais: ambas têm nomes estranhos em decorrência de um erro do tabelião do cartório, que, em vez de Amélia e Jacinta, registrou-as como Amébia e Giacinta, prática muito comum no sertão nordestino, por conta da pouca escolaridade dos escribas.

    Gia volta à caatinga onde Bia nasceu para tentar descobrir o seu paradeiro, mas apenas consegue ouvir relatos sobre a infância dela, que foi criada pela tia, a “bruxa-madrinha” mal humorada e rabugenta, com quem se mudou de Recife para São Paulo. A narrativa de Bodum é a da busca de Gia pela amiga, sua viagem pelo interior, que alarga seus olhos para a miséria da região, tervigersando por temas nevrálgicos como a xenofobia sofrida pelo nordestino no sudeste e os crimes contra os povos indígenas.

    Ao procurar pela amiga, Gia procura também por ela mesma ao retornar igualmente ao seu sertão e entender que ele continua sem redenção e que ela não pertence mais àquela realidade. Resta-lhe monologar consigo mesma, dar aulas de língua portuguesa na universidade e ler romances como “Genetílides”, o livro que a acompanha por toda a viagem, cujo enredo a faz intuir que a amiga está morta, o que, afinal, não se confirma.

    Além da trama costurada pela protagonista, seduzem o leitor algumas reflexões metalinguísticas acerca da semântica da palavra caatinga – que a personagem prefere pronunciar catinga, - traçando um paralelo semântico com a palavra que dá título à obra – bodum – que significa ‘odor almiscarado, cheiro nada agradável’. Muito sensorial, Gia diz carregar o “cheiro de pneu queimado” nas narinas, como a dizer carregar consigo a abundância de um passado desafortunado: a orfandade, a pobreza sertaneja, a perda de um olho, o estupro e suas consequências, e a solidão.

    Embora marcada por tantos infortúnios, Bia é uma vencedora, pois saiu sozinha de sua terra, enfrentou a discriminação, estudou e se fez professora universitária. É o conhecimento a sua arma contra a ignorância e o seu bastão na luta pelo “culto aos ancestrais e às crenças múltiplas que beneficiem a humanidade”, despertando a consciência dos seus alunos para os problemas brasileiros e estimulando mudanças. Ela parece gritar que o caminho para vencer a desigualdade social é pela educação. O discurso de Gia é o da escritora, que não se omite aos problemas sociais do seu país e mantém hasteada sua bandeira de luta. Parabéns, Celma Prata, pela potência da sua fala na voz de sua protagonista.

 

Aíla Sampaio

sábado, 24 de agosto de 2024

...e por falares e cantares...: uma viagem ao centro do mundo!


        O livro ...e por falares e cantares..., de Pedro Gurjão, é um volumoso compêndio de vivências, experiências, papos-cabeça, anedotas, compilados, reflexões, referências, enfim, textos diversos, muitos já publicados e debatidos nas redes sociais, inclusive com comentários interacionais de alguns internautas. O livro é constituído por um manancial temático muito vário, que se divide em 13 séries em vez de capítulos, iniciadas após a homenagem aos 100 anos do Millôr, com quem o autor dividiu momentos de partilha pessoal e cultural. Textos em prosa se alternam com textos em versos, numa miscelânea de crônicas, ensaios, poemas e canções, com incursões pela mitologia grega, pelas artes plásticas, pelo cinema, pelo jornalismo, pela publicidade e pela literatura, mostrando uma versatilidade incrível para mudar de assunto sem perder o ritmo, ora usando a língua portuguesa de modo criativo, ora transgredindo-a conscientemente numa atitude de rebeldia ante as formalidades.

              Sua vasta cultura se apresenta nas referências constantes a pintores, filósofos, pensadores, cantores, compositores, romancistas e poetas brasileiros e estrangeiros sobretudo dos séculos XIX e XX. Anedotas e causos ficcionais misturam-se a relatos, muitas vezes jocosos, de acontecimentos. Pedro é cronista e também é poeta e trovador, e seu conhecimento de mundo e intelectual é tão amplo que é impossível abarcá-lo numa simples resenha. É preciso abrir o seu livro e passear pelas páginas com calma, como quem visita uma enciclopédia animada. Aviso: muito do que ele fala não está acessível no Google, então, o meu conselho é quem quer agregar conhecimento mergulhar na leitura.

        Junte-se a essa volumosa bagagem o seu poder de observação do mundo, de captar a essência do que vê, do que lê e escuta, sua capacidade de articular opiniões e entregar-se ao memorialismo estupendo dos seres graves atravessados de imensa sensibilidade. Como diz Oswaldo Euclides de Araújo, na apresentação da obra, ele "abre um baú de ideias e memórias com seus insigts geniais, para repartir, e assim multiplicar, os tesouros que carrega em sua mente preciosa e em seu coração generoso". De fato, ele compartilha detalhes guardados de leituras feitas, de cenas vividas, de pessoas que fizeram parte da sua história, relacionando-as e criando intertextos inusitados, que não sei se todos os leitores estarão preparados para perceber. Talvez ele tenha escrito para ele mesmo, para não esquecer as tantas informações, que permanecerão para sempre ao seu alcance por meio do registro livresco.

Depois da série 1, que tem como leitmotiv a mulher, na série 2, seus causos e anedotas resgatam personagens reais, e as histórias verídicas são permeadas também de personagens ficcionais que dialogam com eles. São muitos enredos a ressuscitar pessoas e acontecimentos; depois a remontar a Fortaleza Antiga (série 2) e suas figuras e espaços proeminentes, trajetórias políticas, fatos curiosos, com o registro do “Memorial Afetivo de Fortaleza, que o autor criou nas redes sociais há 4 anos. São postagens transcritas e comentadas sobre assuntos diversificados, como carros, filmes, misses, perfumarias etc etc etc.

A série 4 evoca a poesia matuta e as cantorias, o folclore, dogmas e crenças. A 5 apresenta o desafio para glosar o mote “Pois é no frigir dos ovos que a manteiga vai chiar”, que é plenamente aceito e realizado, seguido de um compilado de pequenos artigos e versos anteriormente publicados no Facebook. Na sequência, série 6, há provocações filosóficas sobre ateísmo e assuntos afins, com o aparato das leituras nietzscheanas e bíblicas feitas pelo autor. Os atravessamentos dos textos literários e musicais são perenes, pois é arguta a sua percepção das intertextualidades.

A série 7 tergiversa pelo poder e o dinheiro, pela política e pelas questões nevrálgicas da sociedade, com passeio literário que vai de trovas próprias a referências contextualizadas de Erasmo de Rotterdam a Lima Barreto, passando pelo Apóstolo Paulo e pelo compositor Luiz Melodia. Nesse ritmo, seguem-se as séries seguintes, com reflexões, citações, trovas e muito pensamento filosófico acerca da vida, ironias ao 'discreto charme da burguesia', visitando Sartre, Bauman, Patativa e até a física quântica. Um dos pontos altos é a série 12, com ensaios acerca da mitologia grego romana, seus deuses e semideuses, suas histórias de venturas e desventuras, castigos. Finaliza-se com a série 13, que traz textos acerca dos cinquenta anos da Feira da Comunicação, numa abordagem mais formal.

A obra é um desafio ao leitor de pouca leitura, é quase fazer uma viagem ao centro do mundo, mas garanto que seu estilo é leve, prosaico, conduz a um clima de conversa, que prende e envolve, como se os relatos estivessem sendo feitos na mesa de um bar, um café, ou olhando o mar. A experiência do autor como jornalista lega aos textos a simplicidade sofisticada dos que sabem ser concisos mantendo as pegadas poéticas profundas. Acredito também que o desafio da leitura possa ser vencido pelo estímulo à curiosidade e à pesquisa. Se nas redes sociais os internautas interagiram, o livro será a continuação desse rito e há a chance de um banho de cultura em quem anda desprovido dela.

Chamo ainda a atenção para o título, colocado entre reticências, e iniciado com letra minúscula, como a dizer que aquele conteúdo é apenas um recorte do que o autor tem a falar; muito há antes e, certamente, muito ainda virá. Além dessa escolha estética, a semântica nos remete e um sarau, que envolve falas e cantos, sedimentando o tom poético do discurso que perpassa todo o livro. Parabéns, Pedro Gurjão. Está justificado o meu voto para senador em você no ano de 1986.


Aíla Sampaio



domingo, 11 de agosto de 2024

O tempo e suas artimanhas

Quando somos muito jovens queremos que o tempo passe rápido para termos a idade da independência e das realizações. E o tempo se arrasta, faz chacota com a nossa cara. Depois ele se esconde e acreditamos que esteja invisível enquanto nos gastamos na luta para atingir os nossos objetivos, as buscas que parecem não cessar nunca, as ambições que criamos. De repente ele se põe na nossa frente, avisando que nos atropelou, que não se distraiu por um só minuto da nossa caminhada. E passamos a correr contra ele como quem nada contra a correnteza, até acordarmos e percebermos que o que temos pela frente é bem menos do que o que ficou para trás.

Quem desperta para o autoconhecimento e a espiritualidade, para as ancestralidades e os carmas, entende que  a vida é bate-e-volta, uma escola cheia de provas, e que sempre chega a hora da prestação de contas, embora, ainda assim, não esteja pronto para tão complicada contabilidade. Os que apenas foram vivendo, focados nas conquistas materiais e no poder, não compreendem os revides, as lições enviadas como chances de aprendizado. Ninguém escapa do sofrimento; a diferença é que há pessoas que aprendem com ele, despertando para a mensagem que trazem; e há pessoas que o atravessam revoltadas, vendo-o como uma circunstância da vida somente. Essa compreensão nada tem a ver com religiões, mas com o conhecimento das leis espirituais e a busca do propósito, que é pessoal e intransferível.

E nos vem, na maturidade, a pergunta inevitável: o que fizemos da nossa vida?  Passado o tempo do plantio, é chegada a hora da colheita. Nada acontece por acaso. Todas as escolhas implicam consequências e, ao fazê-las, devemos estar preparados para pagar o preço, pois somos os responsáveis pelas nossas ações. Não existem fórmulas de bem-viver. Existem opções conscientes de, durante o nosso trajeto, seguir as leis que regem a harmonia do universo Os resultados positivos que buscamos não estão na acumulação de bens nem na ostentação de poder. Sem o pensamento sistêmico e o autoconhecimento, a riqueza material só escraviza, não garante nenhum grão de felicidade.

Essas reflexões estão comigo há décadas. Faz tempo que procuro compreender o propósito de tantos revezes em minha vida, desde a perda do meu pai, quando eu era criança, da situação financeira que tínhamos, a perda de amores, de oportunidades importantes... Desde que fiquei atenta a todos esses acontecimentos, aprendi a olhar mais para a metade cheia do copo e a saciar-me com ela. Cresci em todos os sentidos, entendendo algumas perdas como ganhos a longo prazo. E o tempo me deu a oportunidade de ver que tudo foi exatamente como deveria ter sido. Todos os que, de algum modo, "atravancaram" o meu caminho, foram "pisoteados" pela vida ao longo da jornada, sem que eu jamais tenha desejado isso. Eles passaram; eu aprendi a voar e me fiz passarinho, com a sensação de ter perdido, lá atrás, no jogo do bicho, para ganhar, mais às frente, duas vezes na loteria acumulada!


Aíla Sampaio




MEU PAI


 

Tenho poucas fotografias do meu pai: uma que ele fez em estúdio, aos 18 anos, após sobreviver a uma cirurgia de apendicite, e duas copiadas de documentos dele que guardei comigo. Ele morreu aos 37 anos, em novembro de 1971, e fazer fotos naquela época, sobretudo em família, não era habitual. Lembro-me de que poucos meses antes do acidente que tirou sua vida, ele chamou o fotógrafo da cidade e pediu que fizesse uma foto de todos nós juntos. Estávamos ao lado do seu carro, que estava parado na frente da nossa casa: ele de óculos escuros, cabelos penteados para cima com brilhantina, minha mãe ao lado, grávida da minha irmã e de cabelos presos; meu irmão mais velho em pose de galã; meu irmão mais novo com sua cabeleira muito loira e olhar tímido; e eu de cabelos longos, amarrados em duas marias-chiquinhas, vestido de organdi com saia curta de babado e meias até os joelhos (como sempre, uma mais alta que a outra). Depois de sua morte, olhei muitas vezes o binóculo que minha mãe guardava dentro do cofre, depois ele sumiu... e foi-se para sempre o único registro em imagem que tínhamos da família reunida. Restou a memória.

Mas eu queria ter mais que uma fotografia minha com o meu pai. Eu queria tê-lo. Queria ter convivido com ele. Queria ter mostrado a ele cada passo dado, queria que ele visse a mulher que me tornei. A jornada foi difícil sem ele, embora a minha mãe nunca tenha largado a nossa mão e, mesmo vivendo o mesmo desamparo, tenha seguido em frente conosco. Sempre me pergunto se ele aprovaria as escolhas que fiz, os caminhos que tomei. A cada atalho, a cada emboscada, a cada "facada" que eu recebia (e não foram poucas), eu o invoquei, eu falei que precisava do seu abraço, da sua presença, e fiz questão de, ainda que tantas vezes estilhaçada, jamais usar a ausência dele para justificar os meus erros e as minhas derrapadas. A roupa de vítima nunca veio com o meu número, felizmente. A cada vitória vi o seu sorriso, a cada conquista vi a sua alegria e fiz questão de agradecê-lo.

Acho injusto que ele tenha partido em pleno plantio e que tenha sido privado da colheita. Mas, depois de tanto mergulhar nas leis espirituais para tentar entender e de buscar o autoconhecimento; depois de amadurecer e alargar os olhos para as prestações de conta que o tempo faz, entendi o significado da sua ausência e fiz dela uma companheira. Parei de perguntar, todos os dias, por que a vida não era justa e segui em frente, com a falta do meu pai habitando minha casa, sentando-se à mesa comigo. Ela ocupa espaço, tem cadeira cativa em minha vida. É onda que quebra na areia, nuvem que se desfaz no vento, ao mesmo tempo em que é chão sob os meus pés, que continuam a andar sem medo desde que ele os ensinou a pisar com força na vida. 


Aíla Sampaio

O Livro das ausências, de Hermínia Lima

    O Livro das ausências , de Hermínia Lima, traz dezenas de poemas acerca de faltas que   habitam, ausências presentificadas pela saudad...