sábado, 24 de agosto de 2024

...e por falares e cantares...: uma viagem ao centro do mundo!


        O livro ...e por falares e cantares..., de Pedro Gurjão, é um volumoso compêndio de vivências, experiências, papos-cabeça, anedotas, compilados, reflexões, referências, enfim, textos diversos, muitos já publicados e debatidos nas redes sociais, inclusive com comentários interacionais de alguns internautas. O livro é constituído por um manancial temático muito vário, que se divide em 13 séries em vez de capítulos, iniciadas após a homenagem aos 100 anos do Millôr, com quem o autor dividiu momentos de partilha pessoal e cultural. Textos em prosa se alternam com textos em versos, numa miscelânea de crônicas, ensaios, poemas e canções, com incursões pela mitologia grega, pelas artes plásticas, pelo cinema, pelo jornalismo, pela publicidade e pela literatura, mostrando uma versatilidade incrível para mudar de assunto sem perder o ritmo, ora usando a língua portuguesa de modo criativo, ora transgredindo-a conscientemente numa atitude de rebeldia ante as formalidades.

              Sua vasta cultura se apresenta nas referências constantes a pintores, filósofos, pensadores, cantores, compositores, romancistas e poetas brasileiros e estrangeiros sobretudo dos séculos XIX e XX. Anedotas e causos ficcionais misturam-se a relatos, muitas vezes jocosos, de acontecimentos. Pedro é cronista e também é poeta e trovador, e seu conhecimento de mundo e intelectual é tão amplo que é impossível abarcá-lo numa simples resenha. É preciso abrir o seu livro e passear pelas páginas com calma, como quem visita uma enciclopédia animada. Aviso: muito do que ele fala não está acessível no Google, então, o meu conselho é quem quer agregar conhecimento mergulhar na leitura.

        Junte-se a essa volumosa bagagem o seu poder de observação do mundo, de captar a essência do que vê, do que lê e escuta, sua capacidade de articular opiniões e entregar-se ao memorialismo estupendo dos seres graves atravessados de imensa sensibilidade. Como diz Oswaldo Euclides de Araújo, na apresentação da obra, ele "abre um baú de ideias e memórias com seus insigts geniais, para repartir, e assim multiplicar, os tesouros que carrega em sua mente preciosa e em seu coração generoso". De fato, ele compartilha detalhes guardados de leituras feitas, de cenas vividas, de pessoas que fizeram parte da sua história, relacionando-as e criando intertextos inusitados, que não sei se todos os leitores estarão preparados para perceber. Talvez ele tenha escrito para ele mesmo, para não esquecer as tantas informações, que permanecerão para sempre ao seu alcance por meio do registro livresco.

Depois da série 1, que tem como leitmotiv a mulher, na série 2, seus causos e anedotas resgatam personagens reais, e as histórias verídicas são permeadas também de personagens ficcionais que dialogam com eles. São muitos enredos a ressuscitar pessoas e acontecimentos; depois a remontar a Fortaleza Antiga (série 2) e suas figuras e espaços proeminentes, trajetórias políticas, fatos curiosos, com o registro do “Memorial Afetivo de Fortaleza, que o autor criou nas redes sociais há 4 anos. São postagens transcritas e comentadas sobre assuntos diversificados, como carros, filmes, misses, perfumarias etc etc etc.

A série 4 evoca a poesia matuta e as cantorias, o folclore, dogmas e crenças. A 5 apresenta o desafio para glosar o mote “Pois é no frigir dos ovos que a manteiga vai chiar”, que é plenamente aceito e realizado, seguido de um compilado de pequenos artigos e versos anteriormente publicados no Facebook. Na sequência, série 6, há provocações filosóficas sobre ateísmo e assuntos afins, com o aparato das leituras nietzscheanas e bíblicas feitas pelo autor. Os atravessamentos dos textos literários e musicais são perenes, pois é arguta a sua percepção das intertextualidades.

A série 7 tergiversa pelo poder e o dinheiro, pela política e pelas questões nevrálgicas da sociedade, com passeio literário que vai de trovas próprias a referências contextualizadas de Erasmo de Rotterdam a Lima Barreto, passando pelo Apóstolo Paulo e pelo compositor Luiz Melodia. Nesse ritmo, seguem-se as séries seguintes, com reflexões, citações, trovas e muito pensamento filosófico acerca da vida, ironias ao 'discreto charme da burguesia', visitando Sartre, Bauman, Patativa e até a física quântica. Um dos pontos altos é a série 12, com ensaios acerca da mitologia grego romana, seus deuses e semideuses, suas histórias de venturas e desventuras, castigos. Finaliza-se com a série 13, que traz textos acerca dos cinquenta anos da Feira da Comunicação, numa abordagem mais formal.

A obra é um desafio ao leitor de pouca leitura, é quase fazer uma viagem ao centro do mundo, mas garanto que seu estilo é leve, prosaico, conduz a um clima de conversa, que prende e envolve, como se os relatos estivessem sendo feitos na mesa de um bar, um café, ou olhando o mar. A experiência do autor como jornalista lega aos textos a simplicidade sofisticada dos que sabem ser concisos mantendo as pegadas poéticas profundas. Acredito também que o desafio da leitura possa ser vencido pelo estímulo à curiosidade e à pesquisa. Se nas redes sociais os internautas interagiram, o livro será a continuação desse rito e há a chance de um banho de cultura em quem anda desprovido dela.

Chamo ainda a atenção para o título, colocado entre reticências, e iniciado com letra minúscula, como a dizer que aquele conteúdo é apenas um recorte do que o autor tem a falar; muito há antes e, certamente, muito ainda virá. Além dessa escolha estética, a semântica nos remete e um sarau, que envolve falas e cantos, sedimentando o tom poético do discurso que perpassa todo o livro. Parabéns, Pedro Gurjão. Está justificado o meu voto para senador em você no ano de 1986.


Aíla Sampaio



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