segunda-feira, 26 de agosto de 2024

O novo romance de Celma Prata


     Bodum é o segundo romance de Celma Prata, cuja narrativa autodiegética traz o relato de Giacinta (Gia), uma professora universitária nordestina, acerca de sua amizade com Amébia (Bia), também nordestina, ambas descendentes de povos originários. Conheceram-se por acaso – “Ao primeiro olhar, nossa principal semelhança era física: pequenas, cheinhas, pardacentas, cabelos pretos lisos, duas coboclinhas bonitinhas meio fora do lugar”. Ambas são órfãs, vivem anônimas e sozinhas na cidade grande até se perderem uma da outra. Mais: ambas têm nomes estranhos em decorrência de um erro do tabelião do cartório, que, em vez de Amélia e Jacinta, registrou-as como Amébia e Giacinta, prática muito comum no sertão nordestino, por conta da pouca escolaridade dos escribas.

    Gia volta à caatinga onde Bia nasceu para tentar descobrir o seu paradeiro, mas apenas consegue ouvir relatos sobre a infância dela, que foi criada pela tia, a “bruxa-madrinha” mal humorada e rabugenta, com quem se mudou de Recife para São Paulo. A narrativa de Bodum é a da busca de Gia pela amiga, sua viagem pelo interior, que alarga seus olhos para a miséria da região, tervigersando por temas nevrálgicos como a xenofobia sofrida pelo nordestino no sudeste e os crimes contra os povos indígenas.

    Ao procurar pela amiga, Gia procura também por ela mesma ao retornar igualmente ao seu sertão e entender que ele continua sem redenção e que ela não pertence mais àquela realidade. Resta-lhe monologar consigo mesma, dar aulas de língua portuguesa na universidade e ler romances como “Genetílides”, o livro que a acompanha por toda a viagem, cujo enredo a faz intuir que a amiga está morta, o que, afinal, não se confirma.

    Além da trama costurada pela protagonista, seduzem o leitor algumas reflexões metalinguísticas acerca da semântica da palavra caatinga – que a personagem prefere pronunciar catinga, - traçando um paralelo semântico com a palavra que dá título à obra – bodum – que significa ‘odor almiscarado, cheiro nada agradável’. Muito sensorial, Gia diz carregar o “cheiro de pneu queimado” nas narinas, como a dizer carregar consigo a abundância de um passado desafortunado: a orfandade, a pobreza sertaneja, a perda de um olho, o estupro e suas consequências, e a solidão.

    Embora marcada por tantos infortúnios, Bia é uma vencedora, pois saiu sozinha de sua terra, enfrentou a discriminação, estudou e se fez professora universitária. É o conhecimento a sua arma contra a ignorância e o seu bastão na luta pelo “culto aos ancestrais e às crenças múltiplas que beneficiem a humanidade”, despertando a consciência dos seus alunos para os problemas brasileiros e estimulando mudanças. Ela parece gritar que o caminho para vencer a desigualdade social é pela educação. O discurso de Gia é o da escritora, que não se omite aos problemas sociais do seu país e mantém hasteada sua bandeira de luta. Parabéns, Celma Prata, pela potência da sua fala na voz de sua protagonista.

 

Aíla Sampaio

Um comentário:

  1. Que honra! Emocionada em ver Bodum nesta página maravilhosa! Obrigada! Beijos

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