domingo, 11 de agosto de 2024

MEU PAI


 

Tenho poucas fotografias do meu pai: uma que ele fez em estúdio, aos 18 anos, após sobreviver a uma cirurgia de apendicite, e duas copiadas de documentos dele que guardei comigo. Ele morreu aos 37 anos, em novembro de 1971, e fazer fotos naquela época, sobretudo em família, não era habitual. Lembro-me de que poucos meses antes do acidente que tirou sua vida, ele chamou o fotógrafo da cidade e pediu que fizesse uma foto de todos nós juntos. Estávamos ao lado do seu carro, que estava parado na frente da nossa casa: ele de óculos escuros, cabelos penteados para cima com brilhantina, minha mãe ao lado, grávida da minha irmã e de cabelos presos; meu irmão mais velho em pose de galã; meu irmão mais novo com sua cabeleira muito loira e olhar tímido; e eu de cabelos longos, amarrados em duas marias-chiquinhas, vestido de organdi com saia curta de babado e meias até os joelhos (como sempre, uma mais alta que a outra). Depois de sua morte, olhei muitas vezes o binóculo que minha mãe guardava dentro do cofre, depois ele sumiu... e foi-se para sempre o único registro em imagem que tínhamos da família reunida. Restou a memória.

Mas eu queria ter mais que uma fotografia minha com o meu pai. Eu queria tê-lo. Queria ter convivido com ele. Queria ter mostrado a ele cada passo dado, queria que ele visse a mulher que me tornei. A jornada foi difícil sem ele, embora a minha mãe nunca tenha largado a nossa mão e, mesmo vivendo o mesmo desamparo, tenha seguido em frente conosco. Sempre me pergunto se ele aprovaria as escolhas que fiz, os caminhos que tomei. A cada atalho, a cada emboscada, a cada "facada" que eu recebia (e não foram poucas), eu o invoquei, eu falei que precisava do seu abraço, da sua presença, e fiz questão de, ainda que tantas vezes estilhaçada, jamais usar a ausência dele para justificar os meus erros e as minhas derrapadas. A roupa de vítima nunca veio com o meu número, felizmente. A cada vitória vi o seu sorriso, a cada conquista vi a sua alegria e fiz questão de agradecê-lo.

Acho injusto que ele tenha partido em pleno plantio e que tenha sido privado da colheita. Mas, depois de tanto mergulhar nas leis espirituais para tentar entender e de buscar o autoconhecimento; depois de amadurecer e alargar os olhos para as prestações de conta que o tempo faz, entendi o significado da sua ausência e fiz dela uma companheira. Parei de perguntar, todos os dias, por que a vida não era justa e segui em frente, com a falta do meu pai habitando minha casa, sentando-se à mesa comigo. Ela ocupa espaço, tem cadeira cativa em minha vida. É onda que quebra na areia, nuvem que se desfaz no vento, ao mesmo tempo em que é chão sob os meus pés, que continuam a andar sem medo desde que ele os ensinou a pisar com força na vida. 


Aíla Sampaio

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