terça-feira, 30 de julho de 2024

O DIGITAL E O ANALÓGICO PODEM CONVIVER

 


É normal que ocorram mudanças no decorrer do tempo, que haja divergências entre gerações que se sucedem, que novas formas de pensar surjam, que umas estejam mais à frente e outras se mantenham mais atrás. Com o avanço veloz da tecnologia, entretanto, sobretudo a partir do uso da internet e das redes sociais, as relações humanas se transformaram radicalmente. É fato que a maioria dos jovens passa grande parte do tempo logada, ostentando um modelo de vida ideal,  consumindo informações fragmentadas, ou distraída nos mais variados jogos, e é inevitável que se distancie da realidade analógica do livro de papel, do prazer da leitura, da conversa olho no olho e de tudo o que requer dedicação e tempo fora das telas de notebooks e smartfones. Tornou-se mais importante fotografar ou gravar um show, um jogo, um lugar ou um evento do que vivê-lo em tempo real.

As amizades se tornaram mais superficiais, porque o mais importante passou a ser o número de seguidores e likes. Novas configurações surgiram também nas relações familiares, e as noções de respeito e hierarquia se relativizaram. As novas gerações, especialmente as dos jovens criados sem presença dos pais, ostentam um modelo de vida muito particular: "não escutam música com mais de 3 minutos, não assistem a filmes que durem 50 minutos, não se concentram na sala de aula nem escutam explanações que ultrapassem os 15 minutos, não leem textos com mais de 280 caracteres, porque detestam "textões"; só escutam áudios na velocidade máxima, e detestam ligações telefônicas"... Telefone serve pra tudo, menos para ligar e conversar com alguém, ouvir a sua voz. 

Disse o internauta Raphael Alves que a ideia de querer reduzir tudo aos 15 segundos de um story não é saudável nem é uma evolução para melhor. Acho preocupante, embora entenda que são cérebros de configurações diferentes, pois tiveram acesso às ferramentas virtuais desde a primeira idade. Não faço discursos moralizantes nem renego a internet, mas tenho provocado discussões acerca dos comportamentos e, como é a minha área,  converso sobre as mudanças linguísticas que galopam dia a dia. É preciso ter consciência de que há outro modo diferente de vida fora das telas e que ela também é interessante. É preciso lidar com a "abstinência" e tratar a ansiedade, que já virou o mal do século.

A rejeição às instituições formais como a família, a escola e a universidade, tão evidente nos nossos dias, constitui um grande equívoco. De fato, modelos de comportamento e conhecimento não se encontram mais apenas nessas instâncias tradicionais. Basta logar na internet e dar um google, como dizem, que tudo está lá. Desde os reality shows com dramas caseiros aos tutoriais para se fazer um bom prato, resumos de obras, análises de filme, tudo! O engano é que, assim como a base da convivência familiar importa, também importa frequentar a escola e a universidade, pois a aplicação dos conteúdos e sua validação devem ser mediadas por um profissional experiente, no caso os/as professores/as, que ativam filtros, dão referências e agregam, selecionando o que é realmente essencial, aplicando metodologias e estimulando a disciplina, que é essencial para a formação.

O digital pode e deve se alternar com o analógico sem problema. Continua sendo importante nos desafiarmos e experimentarmos vivências diferentes, treinar a paciência intelectual, meditar, escrever diários, ler bons livros, ouvir música, olhar nos olhos, amar, buscar o autoconhcimento. Essas atitudes não mudam as inquietações da vida ou as incertezas inevitáveis, mas nos ajudam a compreender os fenômenos existenciais, a conviver com eles, e, quem sabe, a encontrar um norte quando estamos perdidos ou, pelo menos, a "suportar" o peso da vida e de nós mesmos. Nada é palpável, mas pode ser menos fluido... Ainda somos seres humanos e não há máquina que roube a nossa subjetividade. Nada, absolutamente nada, pode mudar isso.


Aíla Sampaio

Colaboração: Zeca Lemos

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