quarta-feira, 15 de agosto de 2007

ORQUÍDEAS


Fico feliz quando Arnaldo me traz orquídeas. Ele não sabe que são elas que me mantêm aqui. São tão raras; talvez, como eu tenha sido na sua vida de culto à melancolia. Eu não poderia mesmo continuar em casa. Não com o seu olhar me espreitando com uma delicadeza medrosa de quem subjuga a calma.
Eu fui agitada como Arnaldo. Tirava impaciente a poeira dos móveis, passava cada nervura da roupa, pouco faltava para lamber o chão. Não tínhamos empregados; eu fazia tudo sozinha e ainda trabalhava numa loja de brinquedos. Ele queria crescer, alcançar as estrelas e eu pegava carona nos seus delírios. A vida passava sem que eu me desse conta de sentir a delícia do seu toque. Não contemplava mais nem o meu umbigo na hora do banho. O tempo sempre queria me atropelar e, para vencê-lo, fui me transformando numa máquina programada. Não cansava, não podia errar.
Ainda no ano da nossa união, um estrangeiro passou a freqüentar a nossa casa; tinha negócios com Arnaldo. A sua expressão era tranqüila. Dizia não correr por nada; nunca valia a pena. Eu estava sempre no jardim, regando as roseiras, quando ele atravessava o portão e me cumprimentava, retirando o chapéu. Jamais me vira fazendo outra coisa, porque chegava invariavelmente à mesma hora do dia.
Numa tarde qualquer de maio, ele atravessou vagarosamente o gramado, com uma muda de orquídeas nas mãos, e presenteou-me. Eram as minhas flores prediletas, mas eu nunca sequer pensei em possuí-las no meu jardim. No dia seguinte o estrangeiro não voltou. Nem nunca mais.
A planta vingou sem dificuldades. Rapidamente começou a ostentar flores com matizes em várias tonalidades roxas e proliferou, tomando conta de todos os espaços. A minha relação com elas era de extrema reciprocidade. Elas conheciam bem a minha fisionomia e eu entendia a largura do sorriso com que me recebiam. Eu não tinha mais vontade de sair de casa para enfrentar um chefe permanentemente mal humorado. Fui sendo dominada por uma alegria avassaladora, por um amor intenso à vida; esse amor novo estava na falta de busca, nas coisas mais simples que eu nunca enxergava como essenciais. Desliguei os meus controles. Não adiantava quererem apertar qualquer botão.
Arnaldo se espantava com a minha tranqüilidade, com o brilho intenso que escorregava dos meus olhos. Ele me culpava por não sofrer mais pelo nosso filho que nascera morto. Aquela dor que eu me obrigava a sentir já era menor do que eu, estava dissipada no êxtase de saber-me viva.
De grosseiro, Arnaldo passou a me tratar com muito tato. Poupava-me de sair só às ruas. Era como se me visse como uma criança. Uma criança crescida capaz de travessuras, uma criança doente que precisa ter a mãe ao lado. Não adiantava eu dizer que a felicidade estava no vazio, na falta de expectativas. Eu não queria mais castelos emprestados. A minha calma me distanciava dele, agredia-o, amedrontava-o.
Fui deixando de olhar nos seus olhos. Cada vez que o fazia tinha a sensação de ter matado a sua amante. Não adiantava eu dizer que o caso era de ressurreição. Depois de levar-me a vários especialistas, percebeu que eu havia enveredado por uma caminho sem volta e decidiu tomar uma providência.
Vivo hoje neste quarto de paredes brancas e janelas altas. Às vezes me deixam passear pelo jardim, mas reclamam se piso nas poças d'água. Dizem que o meu caso é sério. Tenho surtos de alegria que só são controlados quando me fazem dormir. Não reclamo nunca dos meus novos amigos; eles nada me cobram, me enxergam como um ser comum, normal. Só não me podem faltar as orquídeas que Arnaldo traz todas as semanas. Corro risco de ficar louca como ele!

Um comentário:

  1. Estou em estado hipnótico com a formosura ingênua, da protagonista deste Conto. A carência que ela tinha, de um olhar atencioso, a necessidade de um carinho, o qual Arnaldo não se interessava em proporcionar pra ela. E surgiu aquele estrangeiro, e com um gesto simples, galanteador e amável, a presenteou com as orquídeas. E por essas flores, a frágil, e ao mesmo tempo, determinada companheira de Arnaldo, se apegou aquele tratamento doce que recebeu do estrangeiro, cuidando com o seu coração repleto de alegria, ao cuidar das orquídeas recebidas. Apaixonante e envolvente este Conto!!!!
    Estou de fato encantado com o que li!!!!

    ResponderExcluir