Aíla Sampaio
(Escritora e Profa. Dra. da Seduc e da Unifor)
A trilogia O Lado Mais Sombrio, de Milton Hatoum, se completa agora com a publicação do romance Dança de enganos (2025), pela Companhia das Letras, trazendo à tona a ditadura militar, o exílio e a fragmentação das relações familiares. Esse último tema é recorrente em obras suas anteriores, com o atravessamento de questões nevrálgicas como rivalidade, rejeição e incesto.
A distância cronológica entre a publicação dos três volumes - A hora da espera (2017), Pontos de fuga (2019) e Dança de enganos (2025) - comprova o excessivo cuidado do escritor com suas produções, que, além de demasiadamente criteriosas nas pesquisas e inventivas no âmbito da criação, são verdadeiras artesanias de palavras. Com efeito, seu trabalho de linguagem é impecável e nos remete imediatamente às melhores obras de Machado de Assis e Graciliano Ramos. Distância maior se impõe entre os dois últimos volumes, separados por uma pandemia e tempos sombrios de retorno ao fascismo e às guerras.
O narrador dos dois primeiros volumes é o protagonista, Martim, que reconstrói sua trajetória marcada pela ausência do pai, depois, pelo desaparecimento da mãe, pela repressão política e pela instabilidade afetiva. Os relatos evidenciam a inconsistência da lembrança e a dificuldade de compreender plenamente o passado, num tom confessional e reflexivo, em que os tempos se entrelaçam, revelando lacunas, silêncios e incertezas.
O contexto histórico - a ditadura militar brasileira (1964-1985) - não é somente um pano de fundo, atravessa a vida das personagens, interferindo em suas escolhas, sentimentos e destinos. A censura, a perseguição política, o exílio e a vigilância constante afetam as subjetividades e produzem rupturas familiares e emocionais. Hatoum articula, assim, o drama individual ao coletivo, revelando como a história nacional impacta na vida privada.
As personagens são delineadas pela incompletude e pela instabilidade. Martim cresce à sombra de um pai dominador, cuja ausência e mistério alimentam conflitos internos e uma busca incessante por pertencimento. As figuras femininas, como a mãe, Lina, a avó, Ondina, e a namorada, Dinah, são presenças ausentes e complexas, que expressam tanto acolhimento quanto fragilidade. Não há personagens idealizadas: todas carregam contradições, medos e frustrações.
Nesse sentido, os enredos apresentam a figura do herói problemático, categoria cunhada pelo crítico maxista George Lukács, ao falar na ascensão da burguesia no séc. XX, distante do modelo clássico do herói. Martim é um sujeito em permanente estado de dúvida, hesitante, introspectivo e contaminado pelo sentimento de inadequação. Sua jornada é mais interior, caracterizada pela tentativa de compreender o que passou, reconstruir sua identidade e lidar com as perdas, sobretudo com a recusa da mãe de que ele more com ela e o novo parceiro, e, depois, seu desaparecimento.
Em Dança de enganos, Hatoum aprofunda a reflexão sobre memória, autoritarismo, laços familiares e identidade, ao mesmo tempo em que promove uma mudança significativa no foco narrativo, ampliando e tensionando as perspectivas apresentadas nos romances anteriores. Como já se disse, A hora da espera e Pontos de fuga são narrados por Martim, em primeira pessoa, sob uma ótica masculina, pela experiência do filho que cresce à sombra da ausência paterna e da repressão política; do filho que, quando adolescente, não entende a ausência da mãe e sua inacessibilidade. Dança de enganos desloca a voz narrativa para essa mãe, personagem in absentia no volume anterior, mas que, agora, se presentifica e convive sofridamente com a ausência do filho e a impossibilidade de localizá-lo. Essa mudança reconfigura a compreensão dos acontecimentos, pois a memória materna revela aspectos silenciados ou distorcidos nos relatos anteriores, evidenciando que o passado é sempre fragmentário e dependente de quem o conta.
O contexto da ditadura militar brasileira permanece central; a repressão política, o medo, a vigilância e o exílio continuam presentes, porém filtrados pela experiência feminina, que expõe vivências da espera, da solidão e da necessidade de sobrevivência emocional. A narrativa mostra como a violência do regime não atingiu apenas os militantes, mas também aqueles que, em situação comum, lidavam com a incerteza e o desgaste cotidiano.
As personagens ganham maior densidade psicológica dentro da fala de Lina, que deixa de ser apenas uma figura observada a distância e se torna proeminente, revelando o sentimento de rejeição da mãe, que não aceita suas escolhas; suas contradições, desejos frustrados, medos e estratégias de resistência. Martim, visto pelo olhar materno, surge como um sujeito ainda mais complexo e vulnerável, o que relativiza a imagem construída por ele mesmo nos livros anteriores. Essa sobreposição de vozes e memórias reforça a ideia de que nenhuma identidade é fixa ou completamente apreensível.
Martim continua distante do herói tradicional: não é um agente de transformação social direta, mas um indivíduo que tem dificuldade de agir diante da violência histórica e emocional. Em Dança de enganos, essa condição se intensifica, quando ele passa a ser reinterpretado por outro olhar, que mostra suas fragilidades e limitações. A própria Lina, por sua vez, pode ser vista como uma heroína silenciosa e igualmente problemática, cuja luta se dá no plano da resistência cotidiana e emocional: sente-se rejeitada pela mãe e castigada pelo primeiro marido, Rodolfo, que a distancia do filho sem que ela entenda por que. Acaba por deixar perecerem os sentimentos por Leonardo, o artista com quem passa a viver, exilada da família, após a separação.
O espaço, que nas obras anteriores é São Paulo e Brasília, se desloca para o interior de Minas Gerais, onde novas personagens surgem. No primeiro volume, Martim se muda com o pai, de São Paulo para Brasília, onde tem início sua formação pessoal e política. Brasília é um lugar de tensão entre os sonhos individuais e a realidade opressiva da ditadura. É lá que o protagonista vive experiências com o teatro, com relacionamentos afetivos e com a repressão política, e molda sua consciência.
Em Pontos de Fuga, ele sai de Brasília e volta a São Paulo, onde passa a morar numa república, como estudante da faculdade de arquitetura. Essa mudança assinala uma considerável mudança existencial. Ele, mais velho e engajado, confronta a repressão política e molda sua identidade entre o individual e o coletivo. A república estudantil, as ruas e os bairros paulistanos são espaços de sociabilidade e luta, em que as memórias de Brasília e o sumiço da mãe se confrontam; ele deixa seu lugar da infância e vai para um lugar de amadurecimento.
Dança de enganos tem seu enredo nas cidades de Ouro Preto, Campinas e Paris. A narrativa de Lina desloca o foco do espaço vivenciado diretamente pelo protagonista para o espaço interior da memória e do relato dela. Agora é Martim o personagem in assentia. Sua ausência está presente na maioria dos relatos da mãe, e é essa ausência que dá a dimensão de sua importância, pois são as inferências de suas ações passadas, decisões ou mesmo o mistério sobre o seu paradeiro, que impulsionam grande parte dos relatos da protagonista.
Ouro Preto é o espaço onde Lina tenta recompor as peças de uma história fragmentada, por meio de álbuns, cartas, bilhetes e lembranças. É o berço da arte barroca, por isso também um cenário para a arte de Leonardo, Maciel Solho, Macena, para as oficinas e trabalhos sociais que realizam. Assim, o último volume estende os espaços físicos, sempre articulando memória, deslocamento, exílio e solidão. Deslocam-se geograficamente personagens e perspectivas, espaços geográficos e afetivos, entre mais enganos que certezas.
A metáfora do título – Dança de enganos – é uma síntese desses movimentos – físicos, psicológicos e históricos, como se preparasse o leitor para a sucessão de equívocos possíveis nas relações afetivas e familiares, nos constantes desencontros e nas ausências sempre muito doloridas. A palavra ‘dança’ sugere um movimento contínuo, alternado, com avanços e recuos, o que remete às aproximações e aos afastamentos na tentativa de recuperar o passado. Até que ponto o passado recuperado é o que, de fato, foi? Haveria outras versões dos fatos contados? Tudo é tão incerto como a própria estrutura dos enredos não lineares, cujas narrativas são, por vezes, interrompidas, tomam desvios, depois são retomadas.
Sim, porque a memória pode falhar. Ou quem a retoma pode ter uma visão distorcida dos fatos idos, de acordo com os seus sentimentos. Porque os silêncios podem ter interpretações diversas para quem os recebe. Meias-verdades podem ser confundidas com verdades; ilusões podem ser criadas e enganos podem acontecer, como os autoenganos necessários à aceitação da realidade ou mesmo à sobrevivência emocional.
Dança de enganos traz, assim, uma espécie de arremate de histórias. Se A hora da espera enfatiza a formação do sujeito em meio à ausência; e Pontos de fuga acentua o deslocamento e a fragmentação provocados pelo exílio e pela busca, o último volume questiona a própria possibilidade de uma narrativa definitiva sobre o passado. A alternância de perspectivas expõe os “enganos” do título: as ilusões, os autoenganos e as versões incompletas da história familiar e política.
Após a descoberta da morte do irmão, Dácio, Lina fica sabendo sobre a atuação política dele, da companheira e do Leo; sabe também da morte da mãe e do poder que seu ex-marido exercia sobre ela. Como se desvelasse um novelo no qual nunca ‘quis’ mexer, Lina se dá conta dos tantos equívocos, desencontros e desacertos. É somente após o encontro com alguns amigos de Martim, da época de sua estada na república e da militância política, na casa da pianista alemã, Karin, em São Paulo, sobretudo após a conversa com o diretor Damiano Arcante, e a leitura dos manuscritos do filho, que ela entende o comportamento do ex-marido em relação à convivência dela e o filho: “Meu ex-marido percebeu o que sempre me recusei a admitir, como certas mães que, talvez inconscientemente, teimam em permanecer incrédulas diante de uma verdade”. Entende, a partir daí, o papel de Dinah, tão parecida com ela mesma, na vida de Martim. Ao compreender, deixa de ser "prisioneira da ausência" dele e perde a necessidade de se redimir.
Desse modo, Hatoum constrói narrativas densas e sensíveis, que exploram o “lado mais sombrio” da experiência humana: o silêncio imposto, o trauma político, a falência das utopias, os laços familiares perturbadores e a solidão do indivíduo mesmo quando está acompanhado. Dança de enganos encerra a trilogia de forma madura e instigante, reafirmando um escritor atento às fissuras da memória e às marcas deixadas pela história autoritária do Brasil nos chamados anos de chumbo. O romance convoca, por fim, o leitor à reflexão sobre a complexidade das relações humanas e sobre o caráter múltiplo e instável da verdade.
