Devo ter nascido numa noite de tempestade. Fiz-me de todos
os tumultos que varriam a escuridão: dos furacões que assanhavam as telhas, da
fome dos bichos no curral, do desespero dos galhos vergados e do uivo do vento
a arrastar-me ao medo de nunca poder acordar.
Mas acordei para sentir os odores da terra molhada, do mato
pisado, dos currais ensopados de esterco. Acordei para pisar a lama das veredas e enfrentar a
correnteza dos riachos. Fiz do medo um impulso e me joguei quase sem pensar nos
abismos que temia. Não, eu não tinha coragem. Eu simplesmente não tinha a opção
de não me jogar.
A vida me batia e eu revidava, num jogo quase suicida. Sei
que aumentei a minha pena e prolonguei muitos cárceres, mas aprendi assim a
caminhar na escuridão no meio da tempestade. A pisar no fogo e andar sem a pele
dos pés. Ainda tenho cavernas dentro de mim, assombros que me acordam na madrugada... Mas hoje sou amiga da
vida e nossas brigas quase sempre terminam com uma declaração de amor. Um
dia ainda vou obrigá-la a parar de me bater e dormir no seu colo sem
preocupação com a hora de acordar... Vou dizer que não sou heroína nem
guerreira, que nunca fui senão uma sobrevivente... E que desejo apenas
descansar na sombra “pra ver a banda passar tocando coisas de amor...”
Aíla Sampaio
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