quinta-feira, 13 de maio de 2021

 




Devo ter nascido numa noite de tempestade. Fiz-me de todos os tumultos que varriam a escuridão: dos furacões que assanhavam as telhas, da fome dos bichos no curral, do desespero dos galhos vergados e do uivo do vento a arrastar-me ao medo de nunca poder acordar.

Mas acordei para sentir os odores da terra molhada, do mato pisado, dos currais ensopados de esterco. Acordei  para pisar a lama das veredas e enfrentar a correnteza dos riachos. Fiz do medo um impulso e me joguei quase sem pensar nos abismos que temia. Não, eu não tinha coragem. Eu simplesmente não tinha a opção de não me jogar.

 A vida me batia e eu revidava, num jogo quase suicida. Sei que aumentei a minha pena e prolonguei muitos cárceres, mas aprendi assim a caminhar na escuridão no meio da tempestade. A pisar no fogo e andar sem a pele dos pés. Ainda tenho cavernas dentro de mim, assombros que me  acordam na madrugada... Mas hoje sou amiga da vida e nossas brigas quase sempre terminam com uma declaração de amor. Um dia ainda vou obrigá-la a parar de me bater e dormir no seu colo sem preocupação com a hora de acordar... Vou dizer que não sou heroína nem guerreira, que nunca fui senão uma sobrevivente... E que desejo apenas descansar na sombra “pra ver a banda passar tocando coisas de amor...”


Aíla Sampaio

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