quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Nunca me esqueci de ti


Faz tempo que não tenho notícias tuas. Na verdade, tenho evitado saber, porque não quero ter certeza de que desististe de nós. Nem quero que saibas ou que saibam que ainda me importo. Ando ocupada em fazer de conta que o passado está morto, mas continuo a carregá-lo, a escondê-lo por detrás das portas que nunca baterei. Sigo como se nada disso se passasse comigo, como se não fosse minha a história que vivo.

Não sei se o que sinto é saudade. Se essa ausência que me abraça é tua ou da certeza que me davas de que eu nunca mais seria sozinha. Fico a imaginar onde deixamos a necessidade de ouvir a voz do outro todos os dias, desde quando se perdeu aquela intimidade que nos permitia dizer o que pensávamos e sentíamos a qualquer hora. Agora, não sei mais o que acontece quando acordas, com quem conversas ou o que te falam, porque o silêncio construiu um muro de incertezas entre nós. E como estranhos, não temos o direito a perguntas ou questionamentos, nada podemos cobrar sobre o que o vento traz aos nossos ouvidos e fere e que, por isso, preferiríamos não ter escutado.

Faz tempo que nos despedimos pela última vez, e eu sabia mesmo que não voltaria a ver-te, mas é como se aquele adeus se arrastasse no tempo e não se consumasse de forma definitiva. Como uma hemorragia que não estanca e sabemos que não suportaremos até sempre.

Lembro que nos prometemos nunca nos perdermos, nunca deixar a distância crescer mais, que fazíamos planos para o futuro como se ele fosse existir; não passava pela minha cabeça que ele pudesse ser um abismo de lembranças. Esqueci que o mundo gira e as peças do tabuleiro mudam, que os sentimentos, na nossa idade, podem ser soterrados pela razão. Hoje, acordei com a tua falta me habitando, com teu sorriso atravessando meus olhos como no primeiro dia em que nos vimos... que posso, então, dizer-te, senão que nunca, nunca me esqueci de ti?


Aíla Sampaio

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Dentro dos livros


Quando ele perdeu o cheiro de chuva

que me acordava nos dias quentes,

escondi-me dentro dos livros

transformada em palavra escrita. 
 

A vida,

como uma frase evasiva,

fez os dias 
 
terminarem sempre numa página arrancada

para que nunca se lesse

a paisagem dos meus pensamentos

recentes

ora incertos como arbitrárias vírgulas

ora suspensos por longas reticências...



Quando ele perdeu o cheiro de chuva

que arrancava a poesia dos meus desertos

nos transformamos apenas em

personagens de livros diferentes.



Aíla Sampaio


 

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

De sapatos novos




Numa esquina qualquer de abril, 
 
ela deixou a atenção que ele não lhe deu, 
 
os telefonemas que não retornou, 
 
e a vontade inútil de vê-lo com vontade dela... 
 
Largou a caixa vazia nos desvãos das horas 
perdidas e irrecuperáveis. 
 
"O que não foi é porque não deveria ter sido", resignou-se.

Viu que já era maio, com suas ruas claras 
 
e seu cheiro de flores. 
 
Sem vontades inúteis, olhou a paisagem de festa
 
e viu as respostas do tempo em seus sapatos novos…
Ficou alguns minutos em silêncio, 
 
depois jurou que teria cuidado 
 
para não os perder na escadaria errada mais uma vez!




Aíla Sampaio 
 

Via de mão única










Habituei-me a ti como às ruas por onde passo automaticamente. 
A mesma paisagem após o café,
a sempre mesma palavra a Deus por mais um dia, 
a mesma vontade de outro olhar que esvaziasse a mesmice que viramos. 

Teu corpo, via de mão única do meu percurso diário, 
escorregou do meu desejo... 
fez-se apenas um quadro na parede da sala; 
um móvel que (não) posso trocar de lugar. 



Aíla Sampaio

Meia-volta








Eu sei que te prometi sorrisos ao meio-dia 
e tardes de domingo menos monótonas. 
Bem que eu tentei cumprir, 
mas a vida deu meia-volta em nossas vontades, 
e as nossas alegrias 
nunca mais coincidiram.
 


Aíla Sampaio

Tu sabes





Tu sabes a ordem das estrelas nas constelações 
e o movimento dos ventos .
Sabes tudo das estações e dos climas amenos 
que ancoram nessas paisagens,
decifras esfinges, acalmas vulcões,
mas não és capaz de ler nos meus olhos
as marés cheias e os tornados 
que se fazem quando chegas e logo te vais... 



Aila Sampaio