quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Extrema-unção




Teu silêncio era uma porta fechada pra vida 
e eu precisava de sol.
Tua palavra era crivada de balas
e eu escrevia poemas dentro da noite
como orações pacifistas.
Se era amor, preferi nem saber.
Há relações que já nascem
com a hora da extrema-unção marcada.

AílaSampaio




quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Havia


Havia qualquer coisa de azul nos olhos castanhos dele.
Uma nesga de sol rasgando a escuridão,
um mar profundo espreguiçando-se no horizonte.
Havia neles cheiros de dia amanhecendo
e sons errantes de fados atravessando o silêncio.

Havia cor entre nós, matizes tantas,
que poderíamos pintar o mundo e morar dentro dele,
sem cercas, sem muros, sem limites demarcados
ou mapas a nos localizar.

Havia nos olhos dele todos os mistérios do vento
e, nos meus, o rompimento do pacto
com a fugacidade do tempo.
 
AílaSampaio

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Eu te amei


Eu te amei com a sofreguidão de um barco à deriva, fazendo dos teus braços o meu cais derradeiro e definitivo. No mar  turbulento das minhas incertezas, navegaste como se pudesses transcender a tua condição humana e ser um deus. Talvez porque compreendesses as minhas súplicas silenciosas e quisesses atendê-las. Talvez porque pensasses que eras a minha salvação ou eu a tua; talvez porque acreditássemos que o amor nos redimiria de todo sofrimento presente, passado e futuro. Naufragamos nos 'entretantos' que a ausência prolongada cavou em nossas certezas, como um túnel abarrotado de dúvidas e inseguranças. Porto de chegadas e partidas, meu coração cansou do vai-e-vem das embarcações, da turbulência dos ventos; escolheu a solidão por morada, não quer mais ancoragem nem despedidas.


AílaSampaio

Entre o para sempre e o nunca mais


Ela esperava pelo consentimento dele para ir embora. Esperava ainda um olhar de reprovação para as malas feitas, uma desculpa qualquer para justificar aquela indiferença. O silêncio dele era impenetrável e ela se perdia em suposições. A ele não parecia importar se ela queria ou não entender; se havia ou não explicação. Nada mudou na paisagem durante a indecisão entre ir ou não-ir dela e a mudez dele que crescia como erva daninha no pensamento: ele continuou distante e calado como quem já disse tudo. Ela, como quem não entendeu, não foi embora nem ficou. Resolveu morar numa nesga do tempo entre o para sempre e o nunca mais, um lugar sombrio onde jamais a veriam sofrendo à espera do inesperado.

AílaSampaio

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Como se




Conheço cada centímetro do teu olhar,
as cores todas do arco-íris
que ele desenhava
em meus cabelos,
quando teus dedos neles amanheciam
feito pássaros pousados.
Conheço cada milímetro do teu corpo,
as infinitas versões do amor
que desenhávamos
nos lençóis
e as das que ficaram para depois,
subtendidas nas promessas que não nos fizemos.

Olho-te  e sinto
como se te conhecesse desde sempre, 
como se te pertencesse de antigamente a minha história;
como se, saídos de dentro do tempo para o infinito,
 tivéssemos nos acolhido definitivamente,
depois de tantos séculos um do outro perdidos.

AílaSampaio

Primavera no outono






Aprendi contigo a florescer sem jardim
sob as nuvens úmidas
que regavam as nossas vontades.
Aprendi contigo as matizes do mar
beijando o céu de azul
e escandindo na noite
os versos que as estrelas ditavam.
Foi contigo que aprendi a posição dos girassóis
e a luxúria das orquídeas, 
reinventando lágrimas e alternando sorrisos
pela lição dos loucos que se souberam fazer livres
dos próprios desejos.
Aprendi contigo a espera da flor, o silêncio da terra
gestando a semente, o espinho escondido sob as folhas
e o desabrochar de cada pétala...
Foi contigo que aprendi a trazer a primavera 
para o outono e a sentir a eternidade 
do momento que passa mas fica para sempre.


AílaSampaio