terça-feira, 14 de agosto de 2007

O Último beijo


Era noite e ela trajava vermelho. Uma noiva incomum numa cerimônia comum. A festa havia terminado, mas os lábios carmim pareciam ainda buscar um beijo que não fosse gratuito. Tudo queria lembrar que o tempo é uma traça imortal. A beleza de Felícia era uma taça de cristal quebrada, embora colada.
Não aproveitou o frescor dos anos para guardar seu amor verdadeiro... esperava, pelo menos, que a terra a acolhesse com louvor, embora soubesse que, com aquele gesto, não conquistaria piedade nem lágrimas. Só espanto. Teve a ilusão do poder, mas, no melhor da festa, puxaram o tapete.
Onde, agora, um beijo envolvido choraria sua boca? Onde um corpo sem mácula teria guardado as sobras da bela que já não era?
Aprumava a piteira entre os dedos e soprava a fumaça com força. Na efígie, via o vôo cego dos pássaros e viajava. A piteira, a fumaça já não a faziam tão só; tocavam-lhe, embora sem vigor. Pulmão... por que poupá-lo se tanto lhe feriam os espelhos?
Durante muito tempo preferiu não enxergar as rugas. Chegou até a acreditar que elas jamais viriam. Cobria-as sem enxergá-las, com pan cake. Sá abria os olhos para o retoque final. Também o cabelo se rebelava encrespado, opaco. Ela nunca viu. Ou não quis.
Num dia de raiva, Maurinho denunciou seu delito: "Te olha no espelho!". Desabou o rosto de outrora; ela via, então, que tinha murchado antes de se deixar colher. Terminou presa à solidão do caule. Mauro tinha razão quando foi embora: flores murchas só em túmulo abandonado!
Mauro tornou perceptível a irreversibilidade do tempo e a fez lembrar do revólver na gaveta da cômoda. O que lhe havia sobrado era feito de ausência: o amor que não teve, o filho que renegou nas entranhas, a beleza esvaída. Pelo menos escolheria partir de vermelho. Pintaria os lábios de carmim para o último beijo.

2 comentários:

  1. agora que passei por todos os poemas, começo a varejar seus contos, Aíla. Já comentei alguns, vou comentando todos de pouco em pouco.
    Este, de ritual de fim, tem daquela tristeza Tchekoviana permeada, embora Tchekov nunca permitisse a coragem do suicídio.
    paz e bom humor

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  2. A mulher é sedução pura. E quando ela sente ameaçado seu reinado de Dama, de Rainha que inflama os corações, e observa seu potencial de seduzir se dissipar com o tempo, essa Dama começa a se quebrar aos gadativamente. Algumas mulheres conseguem administrar bem isso, mas as "Dama Glamourosa" se priva de continuar a viver como dona de casa, e jamais aceita seu reinado real perder o jogo para as novas gerações de Damas Exuberantes, a tomarem seus lugares.
    Encantadora maneira de relatar a queda do reinado da Dama Felícia. Você, cara Aíla, é pura magia, quando escreve contos, crônicas ou poesia.
    Abraços.

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