quarta-feira, 15 de agosto de 2007

INSÓLITA FAMILIARIDADE

É certo que demorei a me vestir, mas o relógio parecia mais apressado do que de costume. Não teriam mais as horas sessenta minutos? Cheguei atrasada ao vernissage já com pressa de voltar para casa. Chovia forte e eu estava cansada. Na verdade, nem sei por que fiz tanta questão... nem por que era tão importante... eu sequer conhecia os expositores!
Escalei os degraus e me instalei no primeiro salão, perto de uma parede de vidro que separava o ambiente das árvores que davam para a calçada. As minhas retinas vasculharam cada espaço e tatearam o movimento de pessoas desconhecidas, que se avolumavam ao meu redor, causando-me vertigem; depois, as telas alinhadas e suspensas por fios invisíveis.
O carro parecia estacionado há muito tempo. Aquele homem não alcançava os meus olhos nem eu os dele, mas o seu perfil transmitia-me uma insólita familiaridade. A cena parecia repetida, congelada numa imagem que eu jamais vi. Tudo era outra vez, sem ter sido nunca a primeira.
Quedei a observá-lo. Por que não entrou? Em que instante resolveu parar ali na calçada com o passo marcado? Parou contra sua vontade ou por que força? Seu olhar parecia deter a porta fechada, estava fixo nela, enxergava-a. Esperei por um movimento que o despertasse de tamanha letargia, enxerguei o candelabro junto à porta, do lado de dentro, e a escada. Já pisou ali? Quantas vezes subiu aquela escada? Para onde dava?
A decoração da sala tinha um estilo colonial. Logo abaixo de um espelho, havia um console com um vaso cheio de flores secas e, deitada numa cadeira acolchoada, uma criança adormecida esperava, talvez, por ele. Voltei os meus olhos e o homem que eu não conhecia permanecia imóvel, sem enxergar o jardim mal cuidado que se escancarava bem na sua frente, sem desconfiar do meu drama. Uma das janelas estava entreaberta e o vento puxava a cortina branca, de organza, para o lado de fora. Se não se decidia, por que não olhava através dela para saber, pelo menos, a conveniência de entrar ou não?
Seria aquela menina de cabelos encaracolados sua filha? O gatinho peludo, acomodado no chão, em vigília, parecia não respirar. Estariam mortos? Pensei em chegar mais perto, sacudi-lo. A menina poderia estar ainda viva. Mas a luz havia sido apagada há não sei quanto tempo e o dono da galeria esperava ansiosamente a saída da última personagem restante no seu cenário.

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