quarta-feira, 15 de agosto de 2007

A CASA

O telegrama não dizia muito. Seria possível voltar a perder algo já perdido? Havia me acostumado a não colocar os meus mortos na bagagem. Abandonava-os a um compartimento qualquer do corpo, para que não lesassem o que de mim restara entre os escombros.
O taxi corria veloz pelo asfalto. Os pneus derrapavam com violência. Faltava pouco. Antes, o percalço de três dias de estrada escorregadia e a chuva impossibilitando a rapidez do percurso. Da estação até a casa não era tão longe. Mais longe estava o meu coração letárgico, congelado na necessidade e no medo de chegar. Quanto mais me aproximava, mais me sentia muda, seca, incapaz de qualquer raciocínio antes de saber por que voltava. Só as notícias determinariam o meu estado.
O muro desbotado denunciava o envelhecimento da minha ausência. Não tinha me dado conta. O tempo sempre obedeceu à cronologia da rotina sufocada e o meu passado foi, circunstancialmente, se transformando num papel amassado em branco. Agora, ressurgia como um vulcão imerso em lavas de fogo. A noite se debruçava sonolentamente sobre mim e a solidão que me instalou na vida, desde menina, reacendia a desnecessidade da dor.
Meu pai recebeu-me sem perguntas. Era o mesmo de vinte e cinco anos atrás; trazia a mesma expressão de ternura no olhar. Abandonou a cadeira na varanda, abriu sem dificuldade o portão enferrujado, abençoou-me e tateou o meu rosto como se quisesse me reconhecer.
__ Então é esse o rosto da minha bonequinha...
Quantos silêncios entre nós! A minha vontade de abraçá-lo havia perdurado entre os meus desejos desde a partida. Mas não o toquei.
Percorri cada cômodo da casa. Interroguei-me pelas janelas. E o pé de cajá? Sobreviveu sozinho à fome das minhas peraltices. Estava velho, estéril; recebeu-me sem euforia. Não fez sorrir nenhum dos seus parcos galhos, embora o vento se fizesse aliado. Nas paredes, rugas que o tempo não esqueceu de cavar anunciavam-se como veias onde o sangue, há muito, parou de correr. O retrato de minha mãe não recuperava o seu nariz afilado, a sua boca carnuda, a sua sobrancelha grossa; os seus traços se perdiam amarelados como se tivessem sempre pertencido a outro mundo. A sua máquina de costura, abandonada a um canto, presentificava sua ausência. E Menininha, Jardineira, M. Rocha, em que terras pastavam agora? E Leão, o cão fiel do meu avô?
Sem nenhuma resposta vi o sol acender os meus olhos insones. Dois homens fardados entraram no largo corredor, chamando-me pelo nome do registro. Alcançaram-me no sótão, conferindo os silos vazios.
Dona Julieta Lessa?!
Então era esse o meu nome. Sabiam. Acordei de um sono que não dormi. Aqueles estranhos, ali. Como sabiam do sótão? Que intimidade os fazia me identificarem?
Somos engenheiros da Prefeitura. Muito prazer!
Estenderam a mão como se tivessem ansiado por aquele encontro. Um deles ensaiou um olhar pelas telhas e, por fim, expressou os pensamentos:
A senhora deve ir para um hotel. Vai ficar melhor acomodada.
Hotel? Como poderia haver um hotel em Missal? E como eu sairia da minha casa, reconhecendo a condição de intrusa? Eu era uma estranha na minha própria terra! Estava, agora, impedida de reconhecer qualquer ligação com aquelas paredes, com aquele mundo já quase soterrado.
O outro, quase compreensivo, estendeu-me o braço, ajudando-me a descer, enquanto falava:
"A senhora sabe, a cidade cresceu, se desenvolveu. Verá como está. Não fará feio para nenhum turista que venha visitar o Lago das Flores".
Lago das Flores. . . murmurei surpresa, distante.
A avenida ficará perfeita, dará acesso direto ao Lago. Posso lhe mostrar o projeto.
Havia chegado à cidade errada. Eu não era eu. Ou eles se enganavam.
Projeto?
Eu não tinha o que argumentar. Eu era eu. Eles não se enganavam.
Fiquei para presenciar o espetáculo. Primeiro, o muro, a sacada onde meu pai fumava o seu cachimbo da índia. Depois, as salas, os quartos, o sótão, o pé de cajá e eu, que guardava em cada tijolo mutilado, em cada folha que voava, uma história esquecida. A minha infância ruía como há vinte e cinco anos. Quando os meus pais morreram. E eu também.

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